Publicado em 29 de julho de 2006
O GLOBO
Com o caso dos sanguessugas crescendo de importância, diante dos indícios de envolvimento de perto de 20% do Congresso, duas situações paralelas se desenrolam. O governo, numa tentativa infrutífera de envolver a oposição, e especialmente o governo anterior, no mesmo nível de responsabilidade que lhe cabe em mais esse escândalo, apresentou, através da Controladoria Geral da União e do Ministério da Justiça, um levantamento estatístico dos convênios firmados pela Planam desde o ano 2000 que esconde o fato de que foi no governo Lula que mais cresceu o volume de dinheiro envolvido nas falcatruas. Por outro lado, evolui a tese do deputado Miro Teixeira de que o parágrafo 10 do artigo XIV da Constituição Federal permite que se impeça a diplomação de deputado eleito que tenha contra si provas de que esteja ligado a algum ilícito que envolva “abuso do poder econômico, fraude ou corrupção”.
Por essa interpretação, não apenas mensaleiros e sanguessugas, mas qualquer candidato que tenha contra si provas na Justiça poderia concorrer à eleição, mas não tomaria posse do mandato, mesmo não havendo “trânsito em julgado” de seu processo. A acolhida da tese na opinião pública, como uma resposta à impunidade, está fazendo com que o assunto seja debatido entre juristas e juízes dos tribunais regionais, e outras autoridades envolvidas na questão aguardam com ansiedade a decisão da consulta que o deputado do PDT fez ao Tribunal Superior Eleitoral.
Com relação à contra-ofensiva do governo, o relatório da CGU tem todas as características de uma peça de viés político, pois as estatísticas utilizadas omitem o montante em dinheiro envolvido no esquema, que é o que realmente interessa quando se trata de desvio de recursos públicos.
Um exemplo claro foi a inclusão de quatro deputados na lista de suspeitos — sintomaticamente dois do PFL e um do PSDB — apenas por questões estatísticas, sem nenhum tipo de investigação. Aroldo Cedraz e Arolde de Oliveira, do PFL; João Almeida, do PSDB; e Marco Reinaldo Moreira, do PP, foram retirados do rol dos suspeitos pela CPI pois a única acusação contra eles era terem feito emendas sobre ambulâncias.
Os percentuais que a CGU usou em seu relatório também levam a conclusões erradas sobre a corrupção. Pelo relatório oficial, a Planam, empresa que superfaturava a compra de ambulâncias e pagava comissões aos políticos, teve participação em 28% dos convênios firmados no ano 2000, sendo que esse percentual pulou para 51% em 2002. No governo Lula, a participação da Planam teria caído para 24,39%, em 2003, e para 16,17%, em 2004. O que inferir desses números? Que a corrupção foi maior no governo anterior, tendo atingido seu auge em 2002, em plena campanha eleitoral, quando o candidato tucano era o ex-ministro da Saúde José Serra.
E por que será que o relatório da CGU não usou o montante em dinheiro que essas operações giravam? Porque os números são completamente diferentes das percentagens e mostram que a Planam faturou muito mais no governo Lula. Segundo dados em poder da CPI, os 28% de convênios representavam R$ 230 mil em 2000; R$ 190 mil em 2001; em 2002, o montante atingiu R$ 3,46 milhões, o que o deputado Raul Jungmann chama de “o grande salto”, representando, segundo o relatório oficial, 51% dos convênios firmados naquele ano.
Já no governo Lula, em 2003, embora representasse apenas 24,39% dos convênios, a Planam obteve R$ 3,19 milhões, pouco menos que os 51% do ano anterior. Em 2004, os 16,17% dos convênios da Planam representaram nada menos que R$ 21,220 milhões, seis vezes mais do que o “grande salto” de 2002. E, em 2005, a Planam faturou R$ 14,46 milhões. Como se vê, se o relatório do ministro Jorge Hage, da CGU, utilizasse as cifras geradas pelos convênios da Planam, não seria possível tentar transferir para o governo anterior a culpa pelo esquema de corrupção dos sanguessugas.
Na questão legal, cresce a discussão sobre a interpretação do deputado federal Miro Teixeira do artigo 14 da Constituição. Seu parágrafo 10 garante que não tomará posse o eleito contra quem haja provas de abuso de corrupção. “É o que basta”, afirma o deputado em sua consulta ao TSE: “Dispensada está a existência de trânsito em julgado de qualquer outra decisão judicial. Trata-se de ação autônoma, de processamento próprio, para o qual são bastantes as provas do ilícito (...) E elas existem em quantidade, em poder da Justiça”.
O desembargador Marcus Faver, do Conselho Nacional de Justiça, está entusiasmado com a saída legal para cortar a impunidade. Ele já tentou outros caminhos, baseado no princípio da moralidade que deve reger o serviço público previsto na Constituição, e a discussão esbarra sempre na exigência do “trânsito em julgado” dos processos, prevista na lei complementar das inelegibilidades. Faver acha que uma lei complementar não pode superar a Constituição.
Quando foi do Tribunal Regional Eleitoral do Rio, Faver indeferiu inúmeras candidaturas com base em acusações de corrupção e antecedentes criminais sem trânsito em julgado. Esse debate sobre a possibilidade de impedir a posse de um mandato sem que os recursos legais previstos tenham sido esgotados divide hoje a opinião jurídica, cada vez mais inclinada a atender ao clamor público contra a impunidade, e a interpretar de maneira mais abrangente as normas constitucionais.
Miro Teixeira, que é advogado e foi constituinte, ressalta que a Constituição fala dos princípios da probidade. “Houve uma enorme adesão à tese, porque o instrumento está representando o que a sociedade quer”, comenta Miro. “Com o número de candidatos contra os quais há prova de corrupção, em poder do Ministério Público, do STF e da CPI, devemos agir. A situação é gravíssima. A impunidade desmoraliza a democracia”, alerta Miro. (Continua amanhã)