O GLOBO
O malabarista
Meu carro parou no sinal e surgiu, do nada, um menino, magrinho, 7 anos no máximo, descalço, com a bermudinha escorrida e uma camiseta de supermercado, jogando para o ar três bolinhas de tênis, num frágil malabarismo.
Era mais de meia-noite: eu dentro do carro blindado, e ele lá fora, diante dos faróis, sob a névoa fria do sereno. Fiquei em pânico.
Se ele estivesse pedindo uma esmola, de dia, seria normal sua presença; uma esmola legitimaria uma contradição social inteligível. A esmola aceita tristemente o mundo mau como inevitável e ainda faz de nós homens “bons”. Uma esmola me salvaria, mas, ali, de madrugada, sem pai nem mãe, vi que aquele menino estava trabalhando para mim, me dando um show com todas as regras para me impressionar.
Minha solidão cresceu e me senti desmascarado, acusado pela inocente presença do pequeno artista. Naquele confronto na noite, quase um duelo mudo, ele, solto, fraco, quase voando no vento, era a realidade crua do país; eu é que era o absurdo, protegido, blindado. E ele não estava pedindo caridade, pena, como fazem os mendigos, expondo chagas, gemendo de cabeça baixa. Não. Ele não queria inspirar piedade, queria apenas um pagamento por seu trabalho de operário, como se dissesse: “Eu tenho profissão, sou um menino malabarista, tenho dignidade como o senhor.”
Essa igualdade profissional, de um cidadão como eu, era quase ofensiva. Eu não sabia fazer malabarismo, e sua perícia me soava como uma acusação muda, revelando nossa trágica disparidade social. Será que ele queria me dar uma lição de vida, com seu malabarismo? Não, não havia traço algum de acusação contra mim; ao contrário, ele era sóbrio, concentrado no trabalho, sem exibicionismo, um profissional mostrando sua competência.
Ele parecia me dizer com sua arte: “De algum modo, sou útil. Nem sei se sou infeliz. Para mim, minha vida é normal. Os outros é que se sentem anormais na minha presença. Eu não tenho pena de mim mesmo; por isso, os outros como o senhor ficam tão culpados. As pessoas prefeririam que eu não existisse. Percebo isso quando sou expulso de uma loja, ou quando ignoram minha presença. Eu estrago a festa. Às vezes, quando tem uma família com filhinhos, papai e mamãe na porta da padaria, fico bem perto deles. É uma maneira de ter uma família, só que ‘de fora’. Sou um antiirmãozinho. Os filhos me olham, espantados. Os pais, então, têm de ‘explicar’ por que eles não são como eu... E não conseguem. Eu sou inexplicável...”
E nada do sinal abrir... “Meu Deus, tomara que fique verde logo, para eu fugir”... Eu quase pedia ao menino piedade para mim, tolerância para meus privilégios, pois, afinal, eu trabalhava também e merecia aquele carro, apesar de ele estar descalço e seminu.
E o sinal não abria. Ninguém para me salvar, ali, indefeso diante do malabarista mirim. Teria 7 anos? Por aí, idade de meu filho. Minha dor aumentava enquanto ele, impávido, jogava agora uma das bolinhas por cima do ombro, virando-se para apanhá-la nas costas, como um Ronaldinho ou Robinho.
Sentia-me um prisioneiro, quase insultado por aquela invasão da miséria. “Como ousam sujar minha noite de folga, sem me pedir licença, me obrigando a sentir horrendos sentimentos? Será que não se pode mais ser feliz no Rio? Não é justo... Com que direito ele me invade a vida? Será que ele é avião de traficantes, será que ele é filho de ladrões? E a polícia que não vê isso? E o governo que não interna essas crianças?”
Tentei me consolar com o ódio ao capitalismo, mas não adiantou, pois eu era a contradição principal, eu era o agente da classe dominante, eu era o inimigo.
O menino não parava de jogar para o céu as três bolinhas voadoras que, domesticadas, eram a metáfora de seu teimoso malabarismo de viver, só, miserável, magrinho, mas ainda capaz de resistir pela graça de sua arte: “Eu me viro, faço pirueta e agüento o tranco”. Havia um certo orgulho no menino.
Peguei a carteira e pensei: “Vou dar uma esmola bem grande, 50 pratas!” Mas vi que eu queria apenas me salvar. Não. Não vou dar tanto, seria um reles mecanismo de purificação. Pensei então em não dar nada, porra nenhuma, para endurecer meu coração como numa ginástica interna — “Pois, se eu tiver pena de tudo, morro. Para viver, hoje, ‘hay que endurecer’ ( sin perder la ternura ?)”
Depois, tentei me consolar pela comiseração, pois, afinal, eu estava transtornado, e isso denotava uma forma de compaixão, de sensibilidade... Afinal, eu era legal... Mas nada... Só o tempo me salvaria, quando o maldito sinal abrisse e eu saísse em velocidade, para tomar um uísque e esquecer. Tentei o cinismo: “Afinal, o mundo sempre foi uma bosta, Hiroshima, Iraque, África...” Mas o menino estava vivo, ele não era um conceito, não era uma contradição. Era um outro cidadão ali na noite, era um espelho meu, um semelhante.
Já pensava num golpe de direção: avançaria o sinal, cantando pneus para longe dali. Foi quando o sinal abriu. O menino veio até a janela, depois de uma pobre mesura de picadeiro. Trêmulo, dei-lhe dez reais (ele era tão pequenino...). Fui generoso, mas ainda “dentro do mercado”. Ele me olhou sem medo, mas sem gratidão. Estávamos “quites”. Disse um breve “obrigado” e foi sentar-se no meio-fio, esperando outro carro. E eu fui embora, me sentindo levemente assaltado. Sim, foi como um assalto sem armas, sem dinheiro, mas fui despojado de certezas, de sossegos, me senti roubado de coragem, de esperança. E saí pensando: “Que será de mim, meu Deus?” Saí dali como de uma guerra, me sentindo um desertor.
E fiz um juramento: nunca mais caio nessa. Se vierem outros, farei uma manobra e avançarei o sinal.