quinta-feira, junho 29, 2006

Jeitinho republicano Coluna - Carlos Alberto Sardenberg

O Globo
29/6/2006

Então ficamos assim: um só reajuste salarial para todo o
funcionalismo federal não pode; vários reajustes para todas as
categorias, isso pode.

Observada a situação com o simples bom senso, porém, parece que dá no
mesmo. Os funcionários receberão seus contracheques com os novos
salários após as Medidas Provisórias editadas ou a serem editadas
pelo presidente Lula. E se a lei eleitoral diz que não se pode
conceder reajuste salarial no período de 180 dias antes das eleições
(no caso, desde 4 de abril último), então todas as MPs são ilegais.

Aliás, é o que concluiu o presidente do Superior Tribunal Eleitoral,
ministro Marco Aurélio Mello.

Mas não é tão simples assim, argumenta, entre outros, o ministro do
Planejamento, paulo bernardo, baseando-se em informações de fonte
boa, ninguém menos que a presidente do Supremo Tribunal Federal,
Ellen Gracie.

O objetivo da restrição legal a reajustes é impedir o uso eleitoral
dessa bondade. O governante vai segurando os aumentos ao longo do
mandato e, quando chega de novo perto da eleição, libera geral. Foi
assim durante muito tempo, até a introdução, recente, do conceito de
responsabilidade fiscal. Ficou assim proibida a concessão de reajuste
para os servidores 180 dias antes da eleição.

Mas aí entra em vigor a cultura do jeitinho jurídico — a mesma que
produziu os megassalários do Judiciário e das demais carreiras
jurídicas, sempre acima do teto. Assim como neste caso se introduziu
a pergunta — mas o que conta para o teto? — também agora se cria a
questão: a qual reajuste se refere a lei?

A interpretação utilizada pelo governo, com o suposto apoio da
ministra Gracie, sustenta que a lei só proíbe o reajuste concedido
universalmente a todos os funcionários, no mesmo percentual e acima
da inflação. O que leva à conclusão: vários reajustes, em percentuais
diferentes, isso pode.

Por essa interpretação, portanto, a lei proíbe uma bondade eleitoral,
mas não várias superbondades. Para deixar bem claro: um reajuste só
de 4,6% (0,1 ponto percentual acima da meta de inflação) não pode.
Vários reajustes abrangendo 95% dos funcionários e variando de 100% a
200% acima da inflação, pode.

O argumento também viabiliza o novo plano de cargos e salários dos
servidores do Judiciário, reivindicado pela ministra Gracie. O seu
resultado é que todos os servidores terão um substancial aumento
salarial real — mas não é aumento, é plano de cargos.

Tudo considerado, de duas, uma: ou o legislador pretendeu coibir o
uso da máquina pública no período pré-eleitoral, e aí estão proibidos
todos os reajustes — quer resultem de reajuste mesmo, de
reclassificação ou plano de cargos —- ou enganou a gente, prometendo
austeridade, mas abrindo brechas.

Há, de fato, uma prática histórica de se procurar a brecha, o
jeitinho. Há muitos anos, a lei estabeleceu que nenhum servidor
poderia ganhar mais que o funcionário número um, o presidente da
República. Esse era o espírito da regra. Aí, começaram a tirar
pedaços do teto: vantagens pessoais não contam, tal e qual benefício
fica fora, acumulação de aposentarias, idem. E assim, chegou-se à
situação em que muitos servidores ganham mais de três vezes o salário
do chefe.

Quando é o próprio governo federal que procura a brecha e quando
tribunais têm interesse em aumentar salários, a coisa fica mais fácil.

Sem contar que há aí uma ameaça de conflito político com os
funcionários, aos quais os aumentos já foram prometidos e alguns,
concedidos. O presidente Lula defendeu a concessão, disse que os
reajustes são justos e que, por ele, ficam. Mas se o Tribunal
Eleitoral vetar, o que se vai fazer? E assim, jogou o funcionalismo
contra o Tribunal ou contra o ministro Marco Aurélio, autor da
interpretação de que os reajustes posteriores a 4 de abril são ilegais.

O presidente jogou para o eleitor. Neste caso, não está em questão se
os reajustes são justos ou não. E, diga-se logo, muitos reajustes são
mais do que justos, são necessários. A questão é o cumprimento
estrito da regra republicana que trata de impedir o governante de
usar o recurso público em sua campanha. A dúvida quanto à data limite
para a concessão dos reajustes foi bastante debatida dentro do
governo. Se, por prudência, as MPs tivessem sido editadas até 3 de
abril, tudo bem.

Agora, ficam quebra-galhos nada republicanos, disputas nos tribunais
e ameaça de conflitos com o funcionalismo. Pior, seria difícil.