quinta-feira, junho 29, 2006

"Cantar a gente surda e endurecida" Artigo - MARCO ANTONIO VILLA


Folha de S. Paulo
29/6/2006

ESTAMOS CERCADOS por políticos corruptos, criminosos organizados como
grupos terroristas e por autoridades truculentas e incompetentes. Em
meio à maior crise da história recente republicana, que desmoraliza
os fundamentos do Estado brasileiro, a elite política continua sem
saber como enfrentar a gravíssima conjuntura nacional.

O bolsa-família está criando uma geração de "Jecas Tatus high tech",
cuja diferença em relação à matriz lobatiana é o uso do cartão magnético

O governo Lula colecionou grandes fracassos. Na política externa,
conseguiu piorar o que já era ruim. O Itamaraty, de há muito, é uma
mera repartição burocrática, cara e ineficaz.
Dos embates internacionais de que participou nos últimos três anos, o
Brasil perdeu todos. O mais grave é que acabou destruindo o que
funcionava razoavelmente bem, como o Mercosul. No episódio recente,
envolvendo o fornecimento de gás, as autoridades brasileiras agiram
inicialmente como se estivessem do outro lado do balcão, como se
fossem bolivianas. A crise de identidade só foi resolvida graças à
pressão da opinião pública.
Na esfera econômica, retroagimos. O Brasil se transformou em grande
exportador de gêneros agrícolas e de produtos minerais. O setor
secundário está atrasado e não há um projeto de longo prazo para as
indústrias. O país assiste passivamente a revolução tecnológica
mundial, sem ter participação relevante no processo.
As taxas de crescimento da economia nos últimos anos foram pífias,
manteve-se a desigualdade inter-regional e a máquina pública
continuou pesada e arcaica, com quase três dezenas de ministérios e
secretarias.
Entretanto, são louvados como grande sucesso de política pública os
programas assistencialistas que congelam a miséria e a pobreza e
retiram recursos dos investimentos públicos (como na saúde, educação
ou transporte). O bolsa-família, por exemplo, está criando uma
geração de "Jecas Tatus high tech", cuja diferença em relação à
matriz lobatiana é a utilização do cartão magnético para sacar o
benefício. E pobre daquele que no futuro pensar em diminuir ou cortar
tais benefícios: estará assinando sua certidão de óbito política.
No campo legislativo, o panorama é desanimador. Nem bem o Congresso
Nacional enterrou o escândalo do "mensalão", foi revelada mais uma
falcatrua: a compra superfaturada de ambulâncias, que envolve dezenas
de deputados. Além dos gastos abusivos de gasolina, de passagens
aéreas e dos altos salários, a Casa se caracteriza pela inépcia
legislativa e a permanência dos velhos coronéis como senhores de
bancadas estaduais. Sem esquecer que em 2007 teremos, tudo indica, a
volta dos mensaleiros -e como campeões de votos.
Frente a esse quadro desanimador, a oposição eleitoralmente viável se
recusou a entrar em campo. Entregou o jogo para o adversário antes de
começar a partida e abdicou da disputa. Como se o presidente Lula
fosse imbatível, apesar de estar atolado em acusações de corrupção e
sem realizações administrativas de fato. Assim como falhou no ano
passado, quando considerou melhor levar o presidente "sangrando" até
2006, para daí vencer facilmente a eleição, agora os estrategistas da
oposição pensam a longo prazo: a vitória virá em 2010! E nos próximos
quatro anos continuaremos a denunciar os escândalos do governo e a
incompetência administrativa, enquanto outros países crescerão
rapidamente, modernizando seu parque produtivo, a infra-estrutura, a
educação, a saúde, etc. É preciso dar um basta a tudo isso.
Não é possível continuar assistindo esse triste espetáculo de
desmoralização das instituições democráticas. Ainda é tempo de tentar
transformar a campanha eleitoral em, ao menos, palco de discussão dos
grandes problemas nacionais, como está ocorrendo no México. Caso
contrário, o candidato Lula será eleito facilmente no primeiro turno.
A vitória esmagadora, somada à complacência popular em relação à
corrupção e ao desinteresse da elite intelectual pela política,
colocará em risco o futuro da democracia no país. No final de "Os
Lusíadas", Luís de Camões clamou: "Destemperada e a voz enrouquecida,/
E não do canto, mas de ver que venho/Cantar a gente surda e
endurecida./O favor com que mais se acende o engenho/Não no dá a
pátria, não, que está metida/No gosto da cobiça e da rudeza/D'ua
austera, apagada e vil tristeza".
Hoje, grande parte da elite política está no "gosto da cobiça e da
rudeza", e muitos desses também estão na oposição. Isso, talvez,
explique não só a sobrevivência de Lula, como a reeleição em
condições tão favoráveis.

MARCO ANTONIO VILLA é professor de história da Universidade Federal
de São Carlos (SP), e autor, entre outros livros, de "Jango, um
perfil" (Globo).