editorial |
O Estado de S. Paulo |
27/6/2006 |
Uma das principais diferenças entre um simples governante e um líder nacional, nas sociedades democráticas, é que ao primeiro, mesmo quando bom administrador, falta o atributo por excelência da liderança - a capacidade de inspirar um povo, pela força do exemplo, promovendo o que os seus concidadãos têm de melhor, e se fazendo símbolo e porta-voz de uma cultura cívica fundamentada em nítidos padrões éticos. Estes, por sua vez, fomentam um novo tipo de coesão social, em que governantes e governados traçam um círculo virtuoso que reduzirá o que houver na mentalidade popular de condescendência com a improbidade e a corrupção. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não bastasse o pouco apreço pelas servidões do cargo, o que assegura que ele jamais será lembrado como um grande gestor da coisa pública, exerce uma forma perversa de liderança, ao usar o seu inquestionável carisma e o seu notável talento de comunicador para deseducar os brasileiros. Ele não apenas arquivou o mote da decência, de que fazia praça em tempos idos. Pior: transformou a indecência em um pecadilho, se tanto, banalizando o mal, na percepção daqueles a quem se dirige. É impossível subestimar a contribuição do presidente para neutralizar a indignação com a cultura da trapaça no Brasil, que se costuma debitar ao suposto caráter macunaímico dos brasileiros. É impossível tampouco esquecer a manifestação inaugural desse deplorável esforço de tornar aceitável o que o próprio Lula e os seus companheiros de outrora proclamavam ser inaceitável. Numa estranha entrevista concedida em Paris, em 15 de julho do ano passado, pouco mais de um mês depois que o então deputado Roberto Jefferson incorporou ao léxico político nacional o termo mensalão, o presidente proferiu uma frase que entrou para a sua biografia, para a história do seu governo e para a crônica da baixa política no País: "O que o PT fez, do ponto de vista eleitoral, é o que é feito no Brasil sistematicamente." Ele queria travestir o mensalão - o suborno rotineiro de deputados - de caixa 2, como se, por ser corriqueira, a prática fosse um delito menor. Um mês mais tarde, visivelmente a contragosto, Lula disse na televisão que "temos que pedir desculpas", sem esclarecer do que, e se declarou "traído por práticas inaceitáveis das quais nunca tive conhecimento", sem especificar que práticas foram essas e identificar os traidores. Agora, até essa ínfima concessão ao sentimento da sociedade, que parecia minar as suas chances reeleitorais, foi removida do palco. Em seu lugar, como se viu sábado na convenção petista que formalizou a sua candidatura, entrou a farsa do Lula injustiçado, vítima dos intentos destrutivos do que chamou "setores elitistas" ou vergastou como "vozes do atraso, que fazem da agressão e da calúnia as suas principais armas". O presidente decerto não foi o primeiro homem público, nem será o último, a se convencer das próprias patranhas fabricadas originalmente para consumo externo, a fim de negar as suas malfeitorias. A esta altura, de fato, é possível que ele tenha se impregnado da patacoada segundo a qual "a oposição aproveitou-se de algumas condutas equivocadas para generalizar culpas e tentar destruir o partido mais autenticamente popular do Brasil". Ele também deve ter se induzido a crer que "nossos adversários tentaram se aproveitar de algumas situações para passar a falsa idéia de que nosso governo compactuava com atos ilícitos". Algumas condutas. Algumas situações. Nonadas que, além de tudo, se afloraram, "é porque este foi o governo que mais apurou - e puniu - a corrupção em toda a história". O espantoso, nessa grande farsa, é que ela não precisaria ser tão grande. Sucessivas pesquisas indicam que uma parcela não desprezível do eleitorado, embora acredite que Lula pelo menos sabia de algo do que se aprontava em seu benefício - com dinheiro público -, não vê nisso motivo suficiente para removê-lo do Planalto pelo voto, quando a inflação está contida, a renda e o emprego formal aumentaram, o crédito se ampliou e ficou menos oneroso, o salário mínimo aumentou 35% em termos reais e o principal programa federal de transferência de renda chega a 9 milhões de famílias. Eis o legado do lulismo: a exumação do "rouba, mas faz".
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