sábado, maio 27, 2006

VEJA Entrevista: José Manuel Durão Barroso


Nacionalismo só destrói

O presidente da Comissão Européia
diz que o populismo é ruim para a
imagem da América Latina e para
o desenvolvimento


Diogo Schelp

 


Brainpix
"A imagem de que a Europa é protecionista é falsa. Somos o maior importador de produtos agrícolas dos países emergentes"

Como presidente da Comissão Européia, o órgão executivo da União Européia, o lisboeta José Manuel Durão Barroso administra as políticas comuns aos 25 Estados-membros. No dia-a-dia, isso significa tentar encontrar denominadores comuns entre governos e interesses divergentes. Não poderia ser diferente num bloco que reúne potências econômicas e políticas, como a Alemanha, e países de economia anã, alguns recém-saídos do comunismo, como a Polônia. Entre as funções do presidente da Comissão Européia está negociar acordos comerciais com outras regiões do mundo. Durão Barroso chega ao Brasil nesta semana para uma visita de três dias, que inclui um encontro com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para, entre outras questões, avaliar a possibilidade de novas conversações para um acordo entre o Mercosul e a União Européia. Primeiro-ministro de Portugal entre 2002 e 2004, Durão Barroso tem tios e primos no Brasil. Seu pai nasceu e morou boa parte da vida no Rio de Janeiro. O presidente europeu tem 50 anos, é casado e tem três filhos. Ele concedeu a seguinte entrevista de sua casa, em Lisboa.  

Veja – O que falta para a Europa derrubar os subsídios à agricultura, uma reivindicação do governo brasileiro nas negociações da Organização Mundial do Comércio?
Barroso – A Europa tem feito sua parte. Na reunião da OMC em Hong Kong, no fim do ano passado, aceitamos 2013 como a data final para terminar com o subsídio à exportação agrícola. Nossa proposta é bastante generosa. Não só acabaremos com a subvenção à exportação como vamos reduzir drasticamente os subsídios à produção. Também cortaremos em 47% as tarifas de importação que hoje recaem sobre produtos agrícolas. Alguns países, incluindo o Brasil, pedem mais. Estamos dispostos a permitir um acesso ainda maior ao nosso mercado, desde que nossos parceiros, incluindo os Estados Unidos, também façam concessões. O apoio americano à agricultura nacional é maior do que o nosso. Ao G20 (grupo de países emergentes, que inclui o Brasil) pedimos que abram mais seus mercados aos produtos industriais e derrubem barreiras no setor de serviços. Concordo que o esforço deve ser maior do lado dos países desenvolvidos. Índia e Brasil, no entanto, podem fazer concessões suplementares.  

Veja – A Europa também pode se beneficiar com o fim dos subsídios?
Barroso – A Europa ganha porque é o maior bloco comercial do mundo. Se o sucesso na Rodada de Doha (série de negociações da OMC iniciada em 2001) é bom para a economia mundial, é positivo também para a Europa. Haverá um impacto duro sobre alguns setores produtivos dos nossos países e, conseqüentemente, custos políticos. Não podemos, no entanto, pensar apenas a curto prazo. É um bom sinal o fato de, apesar dos diferentes interesses dos países da União Européia nessas questões, termos conseguido apresentar uma frente unida nas negociações em Hong Kong.  

Veja – O presidente Lula disse há três semanas em Viena que o impasse na Rodada de Doha é responsabilidade dos países ricos. O senhor concorda?
Barroso – Todos têm responsabilidade. Para chegar a um acordo é preciso ver o que cada um pode fazer. A Europa já fez um grande progresso. Nós hoje temos subsídios à agricultura, mas grande parte deles não tem o efeito de barrar as importações. Essa imagem de que a Europa é protecionista é simplista e falsa. A Europa é de longe o maior importador de produtos agrícolas dos países em desenvolvimento. Importamos mais produtos dos países menos desenvolvidos do que todos os outros membros do G8 juntos, o que inclui Estados Unidos, Canadá, Rússia e Japão.  

Veja – O senhor acha que o Brasil é mais protecionista que a Europa?
Barroso – Nossas tarifas para a importação de produtos industriais estão muito abaixo das praticadas no Brasil ou na Índia. A União Européia já é o principal destino comercial do Brasil. Estamos à frente dos Estados Unidos, do Mercosul ou da China. Nem sempre foi assim. As exportações agrícolas brasileiras para a União Européia aumentaram apenas 3% entre 1988 e 1995. De 1995 até 2004 já cresceram 93%. O Brasil tem um superávit agrícola com a Europa de 8,2 bilhões de euros, quando em 1995 era de 3,6 bilhões. Estamos disponíveis para negociar a questão agrícola assim mesmo, porque o nível de renda aqui é mais elevado. A condição essencial é que os Estados Unidos e as economias emergentes também cedam. Concordo com a preocupação do presidente Lula em relação aos países pobres, mas é preciso separar as coisas. O Brasil não é Burkina Faso. Há uma diferença entre as grandes economias emergentes, como o Brasil e a Índia, e outros países menos desenvolvidos. Estes, sim, precisam de ajuda.

Veja – Como o senhor vê as recentes medidas nacionalistas de alguns governos da América Latina, como a estatização de empresas estrangeiras?
Barroso – Patriotas todos nós somos. A questão é quando há uma tendência populista e chauvinista em um governo. Isso é negativo. Os países que vão por essa via serão os principais prejudicados. Em um mundo cada vez mais aberto e globalizado, mesmo os países pequenos não conseguem ir muito longe sozinhos. Veja o caso europeu: a Alemanha, a França e a Inglaterra, que são grandes potências, perceberam que sozinhas não conseguiriam ter todo o peso de que gostariam. Por isso existe integração regional. É preciso superar essa visão medíocre de um nacionalismo chauvinista. Trata-se de um fenômeno perverso que ultrapassa a fronteira entre a democracia e a demagogia. Isso passa uma imagem negativa da região, que tem tido um bom desenvolvimento nos últimos anos, com uma democratização e uma modernização muito intensas. Há, claro, problemas persistentes e muito graves de exclusão social. Uma coisa é certa: não é com visões nacionalistas que se consegue o desenvolvimento da população.  

Veja – O Mercosul vive seu período mais crítico, com a Argentina e o Uruguai divergindo devido à construção de fábricas de celulose na fronteira. O que os membros do bloco têm a perder com isso?
Barroso – Em Viena (na cúpula União Européia–América Latina e Caribe, há três semanas), falei com nossos parceiros do Mercosul para encorajá-los a superar as dificuldades. Esse tipo de problema é natural em um projeto de integração. Vamos comemorar agora cinqüenta anos do Tratado de Roma, que criou a Comunidade Econômica Européia (embrião da União Européia). A CEE surgiu depois de uma guerra terrível, talvez a pior da história. França e Alemanha reconciliaram-se e juntaram-se com outros países para criar o maior exemplo de integração de países. São nações que se mantêm independentes, mas têm um projeto em comum. Tenho confiança no Mercosul e acredito que a experiência européia, devidamente adaptada à realidade da América do Sul, pode ser uma fonte de inspiração para a região. O Mercosul pode ter um grande futuro e, para isso, seria essencial uma associação com a União Européia. O bloco sul-americano poderá ser o maior exportador mundial de mercadorias agrícolas e agroindustriais. Com mais investimentos da União Européia, poderia ser também um exportador relevante de produtos de maior valor agregado.  

Veja – O acordo comercial entre a União Européia e o México pode servir de exemplo para o Brasil?
Barroso – Desde que firmamos um acordo entre a União Européia e o México, há seis anos, os investimentos das empresas européias no país latino-americano duplicaram. Entraram 150 novas companhias européias no México. Nesse sentido, o potencial do Mercosul é imenso. Se conseguirmos um acordo de associação entre a União Européia e o Mercosul, será bom para todos os países da região. Sem contar a mensagem política positiva que isso teria para superar o tal nacionalismo populista. Países como o Brasil poderiam assumir o papel de apresentar ao mundo uma região moderna e avançada, no lugar de uma América Latina que quer voltar aos tempos do indesejado e primário nacionalismo. A integração regional é um caminho para descartar essas tendências políticas negativas.

Veja – Há quem diga que com o crescimento dos mercados asiáticos a América Latina se tornou irrelevante para a Europa. O senhor concorda?
Barroso – Em política internacional, há modas e tendências. É verdade que, hoje em dia, a atenção da imprensa da Europa e dos Estados Unidos está concentrada na Ásia. Mas é um erro descuidar da América Latina. Não digo isso por simpatia ou por minhas ligações pessoais com o Brasil. Há outros motivos para valorizar a região. Primeiro, uma proximidade cultural entre Europa e América Latina, que pode facilitar o desenvolvimento de negócios. Isso não existe em relação à Ásia. Segundo, os países da América Latina, com algumas exceções pontuais, são hoje democracias. Terceiro, as taxas de crescimento na região continuarão sendo muito convidativas nos próximos anos. O Brasil, por exemplo, conseguiu superar a instabilidade financeira crônica, um fator fundamental para conquistar a confiança dos mercados globais. Devemos respeitar o sucesso de países como o Chile. Por tudo isso, eu não compartilho da idéia de que só a Ásia importa. A América Latina, por essa forte ligação cultural, deve ser prioridade da União Européia. Nesse contexto, o Brasil desempenha um papel especial. Afinal, contrariando a geografia, o Brasil exporta mais para a Europa do que para os países da própria América.  

Veja – A Europa vive um dilema: ao mesmo tempo em que precisa importar trabalhadores, teme a invasão de imigrantes. Como resolver esse impasse?
Barroso – A Europa já é, em termos de circulação de trabalhadores, a região mais livre do mundo. A regra na União Européia é que qualquer pessoa do bloco tem todo o direito de se movimentar, de se estabelecer e de trabalhar em outro país como se fosse um cidadão do local. Há dois anos, de um dia para o outro passamos de quinze para 25 países, quando houve a ampliação da União Européia. As medidas de restrição que existem em relação aos novos países-membros são apenas de caráter transitório. Essa nova realidade acirra ainda mais o debate sobre receber ou não mão-de-obra de fora da União Européia. Em alguns países europeus, já há uma porcentagem muito grande de trabalhadores estrangeiros. Nós da Comissão Européia defendemos uma política de controle rigoroso na entrada dos imigrantes, mas de acolhimento generoso. É preciso haver uma integração real daqueles que querem trabalhar em nossos países. O fato é que a Europa vai precisar, nos próximos anos, de mais importação de mão-de-obra. Essa é uma condição essencial para o nosso desenvolvimento. Quando se compara o crescimento dos Estados Unidos com o da Europa, percebe-se que isso aconteceu porque eles importaram muito mais mão-de-obra do que nós.  

Veja – Como fazer para que a imigração muçulmana não entre em conflito com os preceitos éticos e políticos da sociedade européia?
Barroso – Esse é um dos grandes dilemas europeus, e as respostas que se dão a ele são as mais diferentes possíveis. Há a tese do laicismo oficial, que proíbe o véu em instituições públicas (como é o caso da França). Outros, entre os quais me incluo, defendem uma aproximação multicultural. O Islã também é europeu. A Turquia, a Bósnia e a Albânia têm maioria islâmica e são países com grande vocação para entrar na União Européia. A França, a Alemanha e a Inglaterra têm comunidades islâmicas que são maiores que a população de muitos de nossos Estados-membros. Sem falar da herança islâmica na Espanha e em Portugal. Há essa idéia de que a Europa tem em sua origem cultural fontes como Atenas, Roma e Jerusalém. A formação greco-romana e judaico-cristã da civilização européia não pode excluir um inevitável componente islâmico. O lado islâmico da Europa precisa ser integrado.  

Veja – Qual é o limite de expansão da União Européia?
Barroso – Quando a Bulgária e a Romênia entrarem no bloco, em 2008, seremos cerca de 500 milhões de habitantes. Já começamos negociações com a Turquia e com a Croácia e foi dado status de candidato à Macedônia. Os países dos Bálcãs já têm reconhecida sua vocação européia. O consenso neste momento é que não se devem assumir outros compromissos de ampliação além desses que citei.  
Veja – Parte da população européia tem medo da globalização, à qual atribui a perda de empregos e de privilégios sociais. Como superar isso?
Barroso – Estamos batalhando para que a Europa, em vez de se ver como vítima, se veja como autora e atriz da globalização. Uma parte da população européia já compreendeu que esta é uma grande oportunidade. Hoje, uma pessoa de classe média pode viajar, ter acesso a bens de consumo, conhecimento e educação com uma liberdade que anos atrás nem uma minoria privilegiada conseguia ter. Há, claro, riscos na globalização, e algumas categorias sociais sofrem mais. Para essas pessoas, temos de ter uma política generosa de apoio e de solidariedade. A maneira de a Europa vencer isso é por meio da pesquisa científica, da inovação e da tecnologia. Precisamos ter mais flexibilidade trabalhista e ao mesmo tempo manter os valores de uma economia social de mercado. Esse é nosso modelo. É um sistema que precisamos modernizar. Também temos de pensar nos milhões e milhões que estão saindo da miséria em países como a China ou a Índia. Se defendemos a solidariedade como valor, não podemos reagir às economias emergentes com protecionismo.