sábado, maio 27, 2006

Lya Luft Vamos fazer de conta

VEJA

"Num devaneio breve, viajei para
o país do sonho e botei na cabeça
o meu boné. O boné do otimismo"

Atômica Studio


Tanto nos queixamos da atual situação do Brasil, geração incrédula e confusa que nos tornamos, que de repente, numa reunião de amigos, divertida e feliz, paramos e indagamos:

– Por que estamos tão descontraídos e contentes? Porque ficamos quase duas horas sem nos queixar do caos em que estamos metidos até o pescoço, ainda por cima acusados, como sociedade, dos males que nos atormentam.

Então hoje, cansada de viagens, palestras e entrevistas, notícias ruins e realidades péssimas, tiro férias. Boto na cabeça um boné de esperança e declaro trégua a mim mesma. O Brasil está ótimo, a situação da saúde pública quase perfeita, vergonha na cara cobrindo todas as caras, corruptos punidos, lei rigorosa para todos, e esperança nos animando. Ninguém propõe que a bagunça, a corrupção impune, o desrespeito e a roubalheira – além da assustadora violência – são culpa da "sociedade branca", a sociedade "rica". Logo vão acusar a sociedade preta e pobre. Ou quem sabe os índios, ou quem sabe os agricultores – não os assaltantes do MST, mas os produtores de alimento, insultados, explorados, humilhados. Obrigados a movimentos e protestos no país inteiro, a fim de chamar atenção para o seu desespero.

Aliás, se pudesse, eu mesma me sentaria sobre um trator daqueles, em inútil desespero porque o governo acha que um bonezinho gaiato é bem mais divertido do que escutar quem produz nosso alimento. Para que alimento? Para que, aliás, comer? Para que estudar? Para que ser honesto e se sacrificar? A bandidagem nos comanda, os direitos humanos não se preocupam com meu amigo assaltado, minha amiga ameaçada, meu vizinho seqüestrado. Preocupam-se com os seqüestradores, os assaltantes, os assassinos. Estão bem-vestidos, bem alimentados, distraem-se como convém, são respeitados?

Faço de conta que estou assistindo, aqui no meu lugar em minha cidade, à posse do presidente da Itália, que acompanhei dias atrás: a dignidade, a serenidade, a experiência de um estadista honrado de 81 anos, famoso advogado, inspirando respeito e homenagens (sóbrias, nenhuma pompa, nenhum espalhafato) até dos adversários políticos. Faço de conta que isso aconteceu no meu país, e a gente sentindo no peito o velho orgulho de crianças quando no pátio da escola hasteavam a bandeira e a gente cantava o hino. Faço de conta, aliás, que meu país é, todo ele, feito uma cidade que conheci recentemente: Goiânia, que me surpreendeu como poucas coisas nos últimos anos. Bonita, limpa, organizada, alamedas de palmeiras e vários parques, com a gente mais acolhedora que já vi. Não percebi ainda nela o medo estampado no rosto dos moradores de outras cidades grandes. Faço de conta que meu país é o terraço de meu apartamento: nem novo nem luxuoso, mas aconchegante, com uma vista de chorar de tão bonita. Brinquei com meus netos pequenos um dia, dizendo que comprei aquela paisagem, e o menorzinho olhou, olhou, e perguntou entusiasmado:

– E por onde a gente desce para brincar?

Pois hoje estou tão sonhadora quanto aquele menino, e tão otimista quanto as autoridades que dizem que estamos ótimos, apenas somos uns ingratos, pois, se algo vai mal por acaso, é culpa de quem veio antes. Aqui, agora, não se sabe de nada, não se explica nada. Nem de onde vieram nem para onde foram os bilhões roubados, que poderiam ter tornado realidade o que eu agora sonho.

Faço de conta que tudo é farra, minha alma já está na Copa, assim ignoro que a cidade se debate na insegurança, o estado na pobreza, o país na esculhambação geral e nós na desesperança. Ou melhor: esperança a gente tem. Porque em alguns meses vamos todos empunhar a nossa melhor arma e com ela fazer a verdadeira revolução: sem sangue, sem morte, sem violência. A revolução pelo voto. Mas para isso temos de ser esclarecidos, informados, e não resignados nem acomodados. Faço, façamos, de conta que o país está em alta: estará se, entre os políticos que nos envergonham tão dolorosamente, for eleito alguém digno, firme. Ele tem, desde já, meu voto, minha confiança, meu aplauso. Meu entusiasmo – meio precário nestes últimos meses.

Nesse devaneio breve (durante o qual somos guiados por autoridades com autoridade, políticos dignos, em cidades seguras, campos produtivos e em paz, filhos em escolas de alto nível e universidades bem aparelhadas, narcotráfico e PCC controlados), viajei para o país do sonho e botei na cabeça o meu boné. Não o do MST, mas o do otimismo. Agora, vamos desembarcar do sonho e encarar os fatos e as perguntas reais. Que fatos? Que perguntas? Não sei se quero saber as respostas. Talvez precise de um boné de coragem.