O Globo |
31/5/2006 |
Através de caminhos tortuosos, e por razões que nada têm a ver com a organização de um Estado moderno e eficiente, o governo Lula está retomando a discussão sobre a reforma da Previdência num momento delicado da campanha eleitoral. O grupo de trabalho criado ontem por sugestão do presidente Lula para estudar a unificação do serviço público dos três poderes é mais um passo que o governo dá na discussão da reorganização administrativa do Estado, tema que tem dominado as preocupações dos principais assessores do Palácio do Planalto diante da impossibilidade de se manter o equilíbrio fiscal com o crescimento da máquina pública. O que está por trás do discurso duro do Ministro Tarso Genro, pregando o fim do "direito adquirido" e contra os privilégios do funcionalismo público, é um conceito de Estado forte e bem capacitado, do qual os petistas não abrem mão, mas que é, na verdade, corporativista e assistencialista. Recuperar o que chamam de capacidade de atuar do estado, que teria sido desestruturado durante a gestão tucana com as terceirizações, é o que justifica os 40 mil cargos preenchidos nos últimos anos. O plano de reajuste salarial que está para ser divulgado, mais que triplicou os recursos orçamentários — de R$ 1,5 bilhão para R$ 5,1 bilhão — com objetivo de dar, até o fim deste ano, aumento generalizado aos servidores públicos, para que todos venham a ter um reajuste no mínimo correspondente à inflação dos quatro anos de governo. Ao contrário do governo de Fernando Henrique, que deu aumentos diferenciados com foco nas chamadas carreiras de Estado, o governo Lula visa a aumentos especialmente nos setores médios das carreiras públicas, atendendo às pressões sindicais. Por isso, apesar dos números retumbantes do superávit primário de abril, no acumulado no ano, ou nos últimos dozes meses, o resultado das contas públicas piorou. Piorou o déficit da Previdência, e vai piorar mais ainda em maio, quando os efeitos do aumento real do salário-mínimo se fizerem sentir. Os números ainda são vistosos, mas, de acordo com análise do PSDB, apontam uma tendência de queda inexorável. No primeiro quadrimestre de 2006, considerando todo o setor público, o superávit primário foi de 6,36% contra 7,45% do PIB em igual quadrimestre de 2005 — ou seja, piorou em 1% do PIB; o total gasto com juros também subiu de 8,7% para 9% do PIB e, com isso, o déficit nominal aumentou de 1,2% para 2,6% do PIB. A deterioração está concentrada no governo central: entre o primeiro quadrimestre de 2005 e de 2006, o seu superávit primário caiu de 5,4% para 4,5% do PIB; o gasto com juros subiu de 6,2% para 7,8% do PIB, e o déficit nominal explodiu de 0,8% para 3,4% do PIB, ou seja, o tamanho da deterioração é de 2,6% do PIB. No primeiro quadrimestre, a receita aumentou 9,9%, mas o gasto público federal cresceu 15,5%, puxado por aumentos salariais, custeio e benefícios. Num país com uma expansão demográfica abaixo de 1,5% ao ano, a concessão de aposentadorias aumentou em 3,6%, as pensões por morte em 2,7% e a renda para idosos pobres e deficientes (Loas) em 10,5%. A saída escolhida pelo governo é atacar os privilégios garantidos pelos "direitos adquiridos" no serviço público, que se refletiriam especialmente nas aposentadorias e nos salários. O objetivo do governo é proteger a grande maioria de funcionários e ter o apoio corporativo para combater os altos salários e aposentadorias milionárias. Uma das idéias, que já foi discutida com o próprio presidente Lula, é aumentar o salário presidencial e transformá-lo num limite real para todos os salários do funcionalismo público. Para dar o exemplo, o presidente abriria mão desse aumento. A diferença de visão sobre a organização do Estado está flagrante na análise do ex-prefeito José Serra, candidato a governador de São Paulo pelo PSDB, para quem "o governo Lula prepara uma poderosa bomba de efeito retardado para a economia brasileira, cuja explosão tem data marcada: depois das eleições". Serra identifica três "irresponsabilidades combinadas": hipervalorização cambial, crise na agropecuária e aumento dos gastos correntes do governo federal. Segundo ele, "as piores chances do Brasil sustentam as melhores chances de Lula ser reeleito. Ou o PT dá certo ou o Brasil se acerta". Serra chama de "modelo de populismo fiscal" o rápido crescimento dos gastos correntes do governo federal, lembrando que as despesas com salários e outras remunerações "chegam para nunca mais sair". Embora seja consenso entre os economistas que se o sistema previdenciário não for reformado as contas públicas de longo prazo não fecham, o economista Luiz Guilherme Schymura, da Fundação Getúlio Vargas, lembra que, mesmo quando se excluem as contas financeiras e previdenciárias, o país ainda tem 21% do PIB para custear sua máquina administrativa, investimentos e política social, o mesmo que têm Chile e Argentina, países com indicadores socioeconômicos melhores que os nossos. Para ele, temos que melhorar a qualidade da gestão pública. Ele cita um trabalho dos economistas Vito Tanzi, do FMI, e Ludger Schuknecht, do Banco Central Europeu, de 2000, que, analisando um amplo grupo de países desenvolvidos, constatou que os países de menor setor público tiveram média de desempenho econômico melhor, com indicadores sociais semelhantes aos obtidos por governos com setor público avantajado. Justificando a visão petista, o estudo mostra que a única exceção é a distribuição de renda, que melhora nos países com governos grandes. Mas, segundo o estudo, a diferença é menor do que o previsível quando se considera o volume de gastos em transferências com o objetivo deliberado de reduzir a desigualdade. |