O GLOBO
Depois de quase 80 anos, atingimos a auto-suficiência em petróleo. Esse processo começou em 1938, com os investimentos nacionais no setor, e com a criação da Petrobras, há 50 anos.
Começou no regime autoritário, nacionalista, desenvolvimentista e trabalhista de Vargas. Continuou na ditadura e na democracia, enfrentou modelos desenvolvimentistas, reformistas e neoliberais, passou por 14 presidentes. A auto-suficiência chegou porque o Brasil persistiu.
Lamentavelmente, esse projeto nacional não se repete em outras áreas. Depois de mais de 100 anos de República, comemoramos avanços pequenos, insuficientes, muito menores do que os de outros países. Diferentemente do petróleo, vamos comemorando ficar para trás em relação ao resto do mundo.
Festejamos o fato de termos um brasileiro a bordo de uma nave russa, quando a China já lançou astronautas em suas próprias naves, os indianos se preparam para fazê-lo em breve, e outros países avançam nas pesquisas espaciais. Consideramos uma vitória termos um passageiro que comprou sua viagem, em uma nave cuja tecnologia desconhecemos, sem que tenhamos qualquer projeto para dominá-la. Não temos uma meta de auto-suficiência espacial, e aquilo que começamos há 30 anos, quando provavelmente estávamos na frente da China, não teve continuação.
Investimos na produção de ciência e tecnologia em institutos e universidades, mas de forma instável, desordenada, sem metas. Como resultado, demos passos menores do que outros países, onde existe continuidade e há metas a serem atingidas. Não somos auto-suficientes em ciência e tecnologia porque reduzimos o investimento no setor, e o apoio aos centros de pesquisas.
Comemoramos cada vez que adultos concluem seus cursos de alfabetização, mas abandonamos o projeto de erradicação do analfabetismo, iniciado em 2003. Ficou o velho trabalho paulatino de alfabetizar, sem uma meta de auto-suficiência. Chegamos a extinguir a Secretaria de Erradicação do Analfabetismo. É como se a Petrobras fosse extinta e o Brasil se preocupasse apenas em perfurar poços.
O Brasil comemora o aumento no número de matrículas, mas não busca a auto-suficiência de todas as crianças freqüentando as aulas em horário integral, e concluindo um ensino médio de qualidade. Não perseguimos metas de educação como fizemos com o petróleo.
Celebramos a expansão do Bolsa Família, quando, na verdade, seu tamanho excessivo é uma prova de fracasso social, já que a auto-suficiência do programa seria que cada vez menos pessoas precisassem dele. O programa não assegura às famílias sua auto-suficiência, que não virá da renda, mas sim da educação de suas crianças. Pior, em vez de mantermos o programa dos governos anteriores, como foi feito com a Petrobras, alteramos seus objetivos educacionais, desarticulamos a vinculação com o MEC.
Recentemente, o governo comemorou o novo salário mínimo, mas sem uma meta de recuperar seu valor, visando à auto-suficiência das famílias que vivem com ele.
Nos anos 70, demos um salto tecnológico com o uso do álcool combustível, para enfrentar a alta do preço do petróleo. Quando o preço baixou, o projeto foi reduzido, deixamos de lutar pela auto-suficiência em combustível renovável. Até mesmo as comemorações pela auto-suficiência do petróleo ignoram o fato de que ela é provisória, porque maior produção significa esgotamento mais rápido das reservas.
A auto-suficiência do petróleo merece ser comemorada, e mais, deve ser entendida e copiada. Entendida como resultado de um projeto de longo prazo, e copiada para outros setores da sociedade, da economia, da infra-estrutura. Podemos ser auto-suficientes na abolição da pobreza, na redução da desigualdade, da elevação do salário mínimo, na implantação de um sistema universal de saúde, na qualidade da educação para todas as nossas crianças.
Basta que as metas sejam definidas, que a sociedade as considere como auto-suficiências, e que os líderes dêem continuação aos programas de um governo para o outro. Como fizemos com a Petrobras.
CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).