domingo, abril 30, 2006

Miriam Leitão Sem cerimônia

O GLOBO



O que espanta não é o ex-governador Garotinho ter como financiadores de campanha empresas com laranjas, sedes de fachada e que, além de tudo, são fornecedoras do governo de sua mulher. O espantoso é fazer isso agora. É muita certeza de que nada lhe acontecerá. E não acontecerá mesmo, porque a lei eleitoral não pune quem não é, oficialmente, candidato.

A esperteza permitida pela omissão da lei é esta: a Justiça Eleitoral só aceita uma investigação por abuso de poder econômico, financiamento irregular ou qualquer outro desvio quando o acusado está na condição de candidato. Neste momento, nada cabe. Tudo isso pode vir a ser considerado se ele vier, de fato, a ser candidato.

Na ausência da lei, o presidente Lula faz o que bem entende com a máquina pública. Ele pode ser apanhado apenas por propaganda extemporânea e existe até uma denúncia sendo analisada no TSE, mas o contribuinte não tem qualquer proteção contra o uso dos recursos públicos em favor de um candidato no período da pré-campanha. É por isso que finge estar ainda analisando as condições ideais, o PT finge que há ainda essa dúvida, mesmo sem ter jamais cogitado ter qualquer candidato alternativo. Só na sexta-feira, no encontro nacional do PT, partido e candidato começaram a admitir o que todos já sabem. Faz bem o ministro Tarso Genro que não toma parte na enganação geral.

Quem é presidente tem direito a tudo. Amanhã, segunda-feira, por exemplo, Lula falará em cadeia de rádio o que lhe convier. Televisões, jornais e até emissoras de rádio passarão o dia reproduzindo suas declarações, como se elas fossem fruto de apuração jornalística ou entrevista; uma informação, e não publicidade gratuita. Lula raramente, nestes quase quatro anos de governo, deu entrevistas. Não gosta do contraditório. Prefere o monólogo. Quem pode culpá-lo, se a estratégia dá certo? Se os monólogos são amplamente divulgados e ele não precisa enfrentar o constrangimento de uma pergunta inesperada?

A enorme vitrine dada, pelas circunstâncias, ao presidente-candidato-não-declarado ainda não é o suficiente. Os governantes, que concorrem a um segundo mandato ou querem favorecer seus candidatos à sucessão, têm ainda a vantagem das verbas publicitárias. Para que fazer propaganda dos governos com o nosso dinheiro? Eles argumentam que não é exatamente propaganda. É informação ao povo. Mentira deslavada e há dez mil formas de provar que é propaganda. E enganosa. Não há nada pior do que saber que nosso dinheiro é usado contra nós. Mas temos que conviver com esse desconforto nas esferas federal, estadual e municipal.

Os políticos brasileiros estão escolhendo um caminho perigoso: o de achar que tudo o que foi visto e sofrido pelo eleitor brasileiro não deixou marcas. Parecem convencidos de que o malfeito de um abona o malfeito do outro e assim sucessivamente até estarem todos absolvidos de suas faltas.

Era de se esperar que alguns políticos fossem refrear seus atos. Não por um acesso ocasional de honestidade, mas por instinto de sobrevivência. A vasta rede de corrupção montada no governo, no Congresso e nos partidos abalou a confiança do eleitor na força do voto, minou a imagem dos políticos em geral e espalhou desesperança principalmente entre os jovens. Dos brasileiros que já atingiram a idade de votar, 43,3 milhões têm 28 anos ou menos: não haviam nascido, ou estavam nascendo, quando foi revogado o AI-5. Esta geração tem paciência mais curta com os erros dos políticos, não está disposta a agüentar qualquer desaforo para manter a democracia. É natural que sejam como são, mas eles são o futuro da democracia. Os políticos deveriam temê-los.

Indiferentes aos riscos, certos políticos fazem coisas como o que vimos nos últimos dias. Fingem gastar com gasolina o equivalente a 431 idas à lua; um político cassado usa um avião fretado por um escritório de fachada; um partido aceita doações de empresas que têm como laranja um presidiário, que funcionam em sede falsa e que receberam milhões como prestadoras de serviço do governo deste mesmo partido. O que exatamente os políticos querem nos dizer com a escalada da desfaçatez?

A única resposta do Congresso ao mais vasto escândalo da nossa época foram três cassações, uma advertência verbal à deputada-dançarina e mudanças cosméticas na forma de fazer a propaganda eleitoral. Além de tímidas, embutiam um truque: as cenas da CPI podem ser consideradas imagens externas ou não? Se forem entendidas como externas, serão proibidas, para alívio do governo. Mas nada disso valerá para a atual campanha. Equivocadas ou não, propostas como proibição de externas ou de divulgação de pesquisa nos 15 dias anteriores à eleição são, antes de tudo, alteração feita durante o ano eleitoral. O TSE provavelmente vai se inclinar por não reconhecer sua validade este ano.

A Ordem dos Advogados vai decidir nos próximos dias se entra ou não com um pedido de impeachment contra o presidente Lula. Se aceitar, estará elevando ainda mais a temperatura de um ano conturbado, porque o pedido será encaminhado à Câmara dos Deputados, que dará a licença ou não. Se a OAB não aprovar o pedido, estará dando uma arma que será usada pelo governo na campanha; uma espécie de absolvição prévia.

A sem-cerimônia com que atuam alguns políticos, repetindo as mesmas práticas, refazendo os mesmos dutos, defendendo-se com os mesmos argumentos surrados — tudo é conspiração dos banqueiros, tudo é culpa da mídia, blá, blá, blá — só nos autoriza a concluir que eles perderam o senso, o tino, o juízo. A vergonha já é coisa revogada.