Merval Pereira - Visões da AL |
O Globo |
25/4/2006 |
BAKU. "O governo de Fernando Henrique é injustamente mal-avaliado, e o governo de Lula é excessivamente bem avaliado. A verdade não está em nenhuma das avaliações". Quem faz essa análise eqüidistante da política recente brasileira pode fazê-la com conhecimento de causa: o sociólogo francês Alain Touraine é próximo há muitos anos do Brasil, onde foi professor na Universidade de São Paulo (USP) e teve como discípulo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. De lá para cá tem acompanhado de perto a política brasileira, a ponto de ter amigos tanto no PSDB quanto no PT, e se orgulha de ter tido participação nas negociações que desaguaram na transição política de poder dos tucanos para o petista que, como o próprio Fernando Henrique revelou recentemente, tinha o objetivo de gerar um governo de coalizão entre PT e PSDB que poderia ter mudado o rumo da história política brasileira. Touraine, que participou do seminário "Cultura da diferença na Eurásia", da Academia da Latinidade, sabe bem que as raízes dessa disputa que impede uma aproximação dos dois partidos está em São Paulo, onde pontifica um outro amigo seu, o atual candidato a governador por São Paulo, José Serra. Touraine ainda não entendeu por que o PSDB não escolheu Serra para candidato a presidente em lugar de Alckmin, mas admite que sentiu, em diversas conversas com Fernando Henrique, que ele sempre considerou difícil derrotar Lula na campanha para a reeleição. Para ele, é possível que o PSDB tenha pensado em preservar Serra de uma derrota, colocando-o no governo de São Paulo à espera da sucessão de 2010, mas não se mostra muito empolgado com essa tática, nem muito convencido de que tenha sido mesmo uma tática, e não uma pura derrota do grupo de Serra. Touraine diz que mais difícil ainda será derrotar Lula com um candidato como Alckmin, que não encarna o que ele identifica ser um movimento pendular que acontece na América Latina depois de quase um quarto de século de uma política econômica liberal sem resultados concretos para a população. — Não se trata de uma guinada à esquerda, mas de uma tentativa de alcançar melhorias concretas para a população — diz Touraine, para quem Lula, apesar de todas as denúncias de corrupção, continua representando uma possibilidade de mudança mais próxima do povo mais excluído do processo econômico em vigor. Mesmo mantendo a política econômica, e lembrando que os programas sociais mais organizados no Brasil começaram no governo Fernando Henrique, Touraine identifica na política de assistência social de Lula uma forte ligação com os mais pobres do país. — Hoje já não se fala em mudança de modelo econômico, muito menos de socialismo. Mas é preciso ter avanços concretos nas áreas que atingem mais diretamente a população. E Lula ainda é quem apresenta mais condições de isso acontecer — ressalva Touraine, para quem Alckmin não transmite essa possibilidade de uma política voltada para os excluídos. — Depois de um quarto de século de políticas que não deram resultado concreto, o pêndulo volta para as políticas direcionadas aos mais pobres, mesmo que um certo populismo venha junto. Alain Touraine acha que se um politico populista como Garotinho chegasse ao segundo turno contra Lula, seria a chance de o impasse entre o PT e o PSDB se romper para a formação de uma coalizão política social-democrata que possa governar o país. O sociólogo não acredita que a América Latina esteja caminhando para a esquerda, mesmo porque põe em posições distintas a presidente do Chile, Michelle Bachelet, e o presidente da Venezuela, Hugo Chávez; o presidente brasileiro, Lula, e o boliviano, Evo Morales. Touraine acha que o populismo de Néstor Kirchner nada tem a ver com o de Chávez, vê na ação de Kirchner necessidades econômicas que Chávez não tem, mas critica a atuação do presidente da Venezuela, que não traz benefícios concretos para o povo apesar de todo o dinheiro do petróleo. Com todas as dificuldades de Lula, Touraine diz que a imagem do presidente brasileiro continua inabalada no circuito internacional. Ele mesmo ainda acha que Lula representa uma opção de esquerda mais equilibrada na região, e toda vez que é questionado sobre os escândalos de corrupção no governo Lula, responde com outra pergunta: — Mas nada encontraram diretamente envolvendo ele, não é ? Touraine é capaz de admitir que Lula pode ser derrotado se alguma denúncia atingi-lo diretamente, mas acha que se as coisas continuarem como estão, dificilmente Lula perderá a próxima eleição. A situação da América Latina foi analisada de maneira indireta e romantizada no seminário de Baku pelo professor Walter Mignolo, da Duke University e diretor do Centro para Estudos Globais e Humanidades. Um argentino radicado nos Estados Unidos, ele tem uma visão muito crítica da política externa norte-americana e, ao falar sobre "culturas subalternas" no mundo globalizado, disse que hoje a diversidade de culturas é confrontada com a homogeneidade econômica: — Não seria melhor para a Humanidade um capitalismo global com a diversidade de facetas culturais, do que um capitalismo com apenas uma face? Podemos imaginar uma política de liberação baseada na riqueza econômica, como pode ser o caso de Hugo Chávez em uma Venezuela rica em petróleo, ou de Evo Morales na Bolívia, rica em gás natural e folhas de coca? Mignolo foi mais além, afirmando, embora sem entrar no mérito, que tanto os zapatistas no México quanto a al-Qaeda colocaram as lutas dos muçulmanos e dos indígenas no centro das discussões internacionais, usando a tecnologia moderna para enviar suas mensagens através do mundo, num discurso que não é mais anticolonial, mas descolonizador. |