sábado, abril 01, 2006

Lya Luft Os meninos do tráfico

VEJA


"Nós todos somos culpados de que
eles tenham existido, sofrido, matado
e morrido, sem nenhuma possibilidade
de vida, de esperança e dignidade"

• O documentário sobre crianças no tráfico, recentemente visto em todo o país, não é de provocar opiniões mas de dilacerar o coração, que anda de sobressalto em sobressalto. Além da tentativa de desviar a atenção perseguindo inocentes, nossos representantes no Parlamento deram para executar danças constrangedoras, comemorando a absolvição de culpados confessos: é a derrocada final da decência brasileira.

Ilustração Atômica Studio


Mas hoje, aqui, me interessa o filme sobre aqueles meninos do tráfico de nossas favelas: eles são nossos meninos. Nada há para discutir ou explicar. Promessas serão um insulto. O documentário – não uma ficção, mas dura realidade – é um tapa na nossa cara, esta cara-de-pau, cara de bunda, cara cínica ou alienada, cara de santo fingido, cara de uma omissão vergonhosa. Cara num riso alvar? Assisti ao documentário encolhida, e tantos dias depois ainda não consegui me sentir inteira. Nunca mais serei a mesma, depois de testemunhar aquilo, e não sei de documentário mais importante neste mundo de Deus. Aqueles meninos banguelas, aquelas meninas magrelas, aquelas vozes arrastadas de sono e droga, aqueles rostos ocultos de medo ou enfrentando impassíveis, aqueles olhares pedintes ou ferozes, mas muito mais pedintes, feriram como mil punhais qualquer pessoa que não estivesse demais embotada.

Espero que essa ferida seja para sempre. Desejo que nunca, nem um dia, a gente esqueça. Eu não quero esquecer, pois, sem usar drogas nem conviver com traficantes, indiretamente, como todo brasileiro, fui responsável pela vida e pela morte deles, pois todos, menos um, já morreram. Nós os matamos.

Muito mais existe do que isso que foi mostrado. Pior: muita gente poderosa, de rabo solenemente preso, vive daquela desgraça; muita cumplicidade perversa promove e mantém aquilo; tudo prolifera e floresce com muito arranjo sinistro – como sinistra, disse um daqueles meninos, era a sua vida: "a vida da gente aqui é sinistra e louca", ele disse com sua voz fraquinha. Vou pensar todos os dias que continuam morrendo crianças iguais àquelas, que poderiam ser meus filhos, teus filhos, nossos filhos. Eram nossos, aqueles meninos e meninas, sonados, ferozes ou tristíssimos, que a gente tem vontade de botar no colo e confortar. Mas confortar com o quê? E aquela arma, e aquelas drogas, e aquela infelicidade, e aquela desesperança? Fazer o quê?

Devolver-lhes o pai morto, entregar-lhes a mãe saudável e menos desesperada, com menos sepulturas de crianças mortas a visitar? Proporcionar-lhes escola, comida, casa, família, vida – tudo isso que para sempre lhes devemos e lhes foi roubado antes mesmo de serem concebidos? Idealmente, romanticamente, se a gente colocasse nas favelas e nos morros do país inteiro uma infra-estrutura minimamente decente, policiamento honrado, escolas em funcionamento, clínicas, locais de lazer e atendimento efetivos, antes acabando com a matança entre "bandidos" e "mocinhos ", alguma coisa iria melhorar.

Mas não há soluções à vista: só palavras e ímpetos de indignação, tudo cheirando a uma certa hipocrisia – e a flor murcha em velório. "Quando eu morrer vou descansar", disse com uma simplicidade arrepiante um menino, tão pequeno que não podia ter mais de 10 anos. Ele morreu, e morrerão muitos mais, porque nada de verdade, efetivamente, é feito, nada muda. Todo aquele entre nós que usa drogas para imitar, para fazer parte, para relaxar, para fugir de problemas que não são tragédias, são apenas problemas, empurrou um pouco mais para a sua tristíssima e imerecida morte aqueles meninos e meninas, que eram nossos. Nós todos somos culpados de que eles tenham existido, sofrido, matado e morrido, sem nenhuma possibilidade de vida, de esperança e dignidade.

Espero que essa ferida e essa vergonha nos dêem alguma idéia salvadora e nos levem a uma postura determinada, que gere ações efetivas, eficientes, reais. Não promessas, não seminários com sociólogos, religiosos, psicólogos e antropólogos, médicos e, quem sabe, policiais. Não entrevistas comovidas e comoventes em televisão e jornais, mas atitudes e ações. Não acredito que elas aconteçam: deixamos que o problema se alastrasse demais, permitimos a guerra civil. Nos assustamos um pouco, aqui e ali interrompemos a dança insensata e nos emocionamos, mas nada além disso. A ferida aberta pelo documentário e pela realidade talvez continue incomodando. Contra ela só há dois remédios: agir, ou alienar-se mais. Desejo que ela nos machuque feito brasa ardente, até o fim da nossa miserável vida.