artigo - *Rolf Kuntz |
O Estado de S. Paulo |
27/4/2006 |
A diplomacia do fracasso comandada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve mais três dias de glória. O presidente boliviano, Evo Morales, mandou mensagens desaforadas a empresas brasileiras na entrevista ao programa Roda Viva, transmitido na segunda-feira pela TV Cultura de São Paulo. Dois dias depois, seu vice, Álvaro García Linera, anunciou a intenção de expropriar o investimento já realizado pela EBX na Zona Franca, localizada na Província de Germán Bush, perto da fronteira com o Brasil. Na terça, o presidente Lula encontrou-se com o colega argentino, Néstor Kirchner, para discutir conflitos no Mercosul e preparar a reunião do dia seguinte com o venezuelano Hugo Chávez. Tema da conversa trilateral de ontem: o Gasoduto Venezuela-Cone Sul, um projeto negociado inicialmente por Kirchner e Chávez e aceito pelo governo brasileiro. Afinal, o Brasil fica no caminho e deverá contribuir com uma boa parte do financiamento. A agenda de Lula ainda incluiu, na terça, um encontro com o presidente colombiano, Álvaro Uribe, envolvido num conflito com Chávez, que se opõe a um acordo comercial da Colômbia com os Estados Unidos. Na quarta, depois da reunião trilateral, Chávez falou durante duas horas à imprensa, disse que votaria em Lula, se fosse eleitor no Brasil, e Ollanta Humala vencerá a eleição peruana. A figura menor em todos esses eventos foi o presidente brasileiro, que parece ter sonhado, um dia, com a liderança de uma Comunidade Sul-Americana de Nações. Talvez continue a sonhar, embalado pelas fantasias que lhe contam seus assessores para assuntos internacionais. No Mercosul Lula não tem mais a mínima influência, se é que teve alguma. O bloco está em frangalhos e a mais nova crise é o conflito entre Argentina e Uruguai por causa dos projetos uruguaios de duas fábricas de celulose e papel. O assunto será resolvido de forma bilateral, porque o presidente argentino mantém a disposição de não recorrer à mediação dos parceiros do bloco. No governo uruguaio há defensores de um acordo comercial com os Estados Unidos, que implicará o abandono da união aduaneira formada com Argentina, Brasil e Paraguai. A encrenca com a Argentina só pode fortalecer esse grupo. O bloco andino também está em pé de guerra, porque o presidente Chávez se opõe à iniciativa de seus vizinhos de negociar um acordo com os Estados Unidos. A Venezuela teria de abandonar o bloco para se associar ao Mercosul, mas seu presidente prefere criar uma encrenca na saída. Chávez já é a figura mais poderosa do Mercosul, embora faltem alguns passos para a completa integração da Venezuela no bloco. Não se poderá retomar a negociação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) sem a sua concordância. Sua atitude, até agora, tem sido contrária a esse acordo e não há sinais de que possa mudar de opinião. Também a negociação com a União Européia ficará na dependência de sua vontade. Apesar da encenação de amizade com Lula, Chávez de fato comandará o Mercosul com a cumplicidade de Kirchner. Afinal, a Venezuela tem sido uma importante compradora de títulos públicos argentinos e isso é muito mais importante para Buenos Aires, a curto prazo, que a melhora de relações com o Brasil. Depois, a política de Lula tem sido acatar, sem esperneio, toda imposição argentina, quando se trata de comércio. Lula e seus assessores talvez imaginem que isso seja parte do preço da liderança. Mas o preço seria excessivo e despropositado, numa união aduaneira, mesmo que a liderança fosse um fato. Nesse quadro, não há como falar seriamente em Comunidade Sul-Americana de Nações. Não há como falar nem mesmo de um futuro para o Mercosul e para sua inserção no mercado internacional. O Brasil continua sem acordos comerciais com os grandes mercados do mundo rico, enquanto muitos de seus concorrentes ocupam espaços - ou porque dispõem de condições excepcionais de competição, ou porque conquistam acesso por meio de acordos comerciais. Se a Rodada Doha fracassar ou ficar emperrada por mais tempo, o Brasil ficará no pior dos mundos. Não terá os benefícios de uma liberalização global do comércio, nem disporá de acordos que abram portas na Europa e nos Estados Unidos. Seus "parceiros estratégicos", como a China, a Rússia e a Índia, continuarão agindo rigorosamente de acordo com ambições próprias, sem incluir o Brasil entre suas prioridades. Na vizinhança, Lula, se reeleito, continuará a acompanhar Hugo Chávez, a ouvir desaforos de Morales e a aceitar as imposições de Kirchner. E ainda falará em reordenar a economia mundial.
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