sábado, abril 29, 2006

Bolsa Família O que é o programa assistencial de Lula

VEJA
A moeda eleitoral de Lula

Com o Bolsa Família, Lula ganhou sua
arma nas urnas. Eleitoreiro ou não,
é inegável que o programa melhora
a vida de milhões de brasileiros


Leandra Peres

 




Com quase três anos de funcionamento e números superlativos, o Bolsa Família transformou-se na grande conquista do governo Lula. Neste ano, o programa consumirá 8,3 bilhões de reais, uma bolada de impostos pagos pelos contribuintes que o governo transfere aos mais pobres. A quantia equivale à metade de tudo que o governo pretende investir em 2006 para construir estradas, hospitais ou açudes. Se atingir a meta de atender 11,1 milhões de famílias até dezembro, o Bolsa Família terá chegado a um exército de 44 milhões de pessoas, o que corresponde à população da Espanha. Individualmente, para quem recebe a ajuda, o Bolsa Família faz a diferença. Em média, o orçamento familiar aumenta 21% com a entrada do dinheirinho repassado pelo governo. Quando se compara o programa brasileiro de transferência de renda com o de outros países, fica claro que aqui o esforço é mais profundo. México e Bangladesh são os que mais se aproximam do Brasil nesse campo. O programa de cada um desses países atinge 5 milhões de famílias. Por sua cobertura e eficiência, o Bolsa Família transformou-se em arma eleitoral. Mas a questão central é: o Bolsa Família conseguirá melhorar de forma efetiva a situação dos mais pobres, como fez o Plano Real de Fernando Henrique Cardoso? Ou sucumbirá à maldição para a qual alertava o imortal sanfoneiro Luiz Gonzaga: "Quem dá uma esmola a um homem que é são / ou lhe mata de vergonha / ou vicia o cidadão"?

O dilema pertence à antiguidade do homem. É famoso o ditado: "Dê um peixe a um homem e você o alimenta por um dia. Ensine-o a pescar e você o alimentará para o resto da vida". Ele aparece em citações chinesas de mais de 5.000 anos atrás. Não há dúvida de que o Bolsa Família está dando o peixe. Mas está abrindo caminho para que se aprenda a pescar? Economistas e sociólogos têm, em geral, uma opinião favorável ao Bolsa Família (veja o depoimento de cinco especialistas). Mas quase todos eles alertam para o fato de que o programa falha ao não abrir uma porta de saída da miséria, frustrando-se assim o objetivo de romper o ciclo da pobreza que tende a passar de uma geração a outra. Os especialistas concedem, porém, que mesmo assim é preciso esperar algum tempo para verificar se o Bolsa Família dará certo ou fracassará como instrumento de redenção coletiva da miséria. Há evidências indiretas de que bons resultados podem ser alcançados. No México, pesquisas mostraram que, na educação, o programa local ajuda – e, como se sabe, melhor educação significa melhor nível de vida. No Recife, uma pesquisa descobriu que as famílias contempladas pelo programa melhoram sua renda de forma mais intensa do que as que nada recebem do governo.

"O recebimento do benefício não foi um desincentivo ao trabalho", diz a professora Lena Lavinas, que comandou a pesquisa. Para um país que estreou no mundo da assistência social com a criação na década de 40 do século passado da famigerada Legião Brasileira de Assistência, a LBA dos escândalos de corrupção e desvios, a distribuição de dinheiro vivo aos mais pobres é, por si só, um avanço na política social brasileira – avanço que começou, registre-se, com a implantação do Bolsa Escola no governo de FHC. Mas, como só distribuir dinheiro não basta, o programa exige contrapartidas. As crianças são obrigadas a comparecer a pelo menos 85% das aulas, a carteira de vacinação tem de estar em dia e as mães precisam submeter-se a exames de pré-natal. A primeira crítica que se faz quanto às exigências é que o Bolsa Família chove no molhado ao exigir o que, de qualquer modo, já é cumprido. Entre as crianças de 7 a 14 anos, 97% estão matriculadas. E as campanhas de vacinação contra poliomielite, difteria, tétano e coqueluche atingem 95% da meninada.

Seria mais proveitoso se, por exemplo, o programa definisse como meta que as crianças que terminam a 4ª série devessem estar definitivamente alfabetizadas – coisa que nem sempre acontece, segundo dados do Ministério da Educação. Ocorre que o problema não se limita a isso. O governo tem desprezado os controles sobre o cumprimento das exigências – mesmo daquelas quase inteiramente inócuas. O governo pede que as crianças freqüentem 85% das aulas, no mínimo, mas não tem idéia do atendimento dessa meta. Até outubro de 2004, nem existia um mecanismo de checagem e controle da freqüência escolar, e só em novembro do ano passado o governo definiu regras para eventuais exclusões. O resultado: até hoje, ninguém foi excluído do programa.

"Se as pessoas acham que vão continuar recebendo a transferência mesmo quando as crianças faltam às aulas, o programa não vale nada", explica o pesquisador do Banco Mundial Francisco Ferreira. O descontrole do governo é um defeito grave porque serve de desestímulo ao cumprimento de metas. Em pouco tempo, o Bolsa Família mostrou que entrega 73% dos seus recursos aos efetivamente pobres, índice considerado muito bom para os padrões internacionais, e contribuiu para reduzir a obscena taxa de desigualdade no Brasil. Só por isso, mereceria aplausos. Mas, no momento em que o governo se despreocupa tanto com a fiscalização, permite concluir que o foco não é a melhoria da vida dos pobres, mas sim a vida eleitoral do presidente da República. E, como sempre, faz-se isso com bilhões de reais pagos em impostos pelos contribuintes.

 

Varanda/Folha Imagem

Lena Lavinas, professora do Instituto de Economia da UFRJ

Falta de metas e objetivos  

"Na avaliação que fizemos em 2000 do Bolsa Escola, implementado pela prefeitura do Recife, observamos que o dinheiro do governo legitimou o retorno e a permanência na escola das crianças pobres com baixo desempenho. O efeito foi extremamente importante, pois obrigou a escola a atender à demanda específica dessas crianças que precisam de um atendimento personalizado. Mas a pesquisa mostrou que a bolsa não teve impacto sobre notas e desempenho escolar. É outra constatação das mais relevantes: o que melhora o aprendizado das crianças é a qualidade da escola e dos professores. Dinheiro não substitui metodologia, competência para ensinar ou meios para aprender. Esse é o problema do Bolsa Família: coloca como contrapartida o que já é praxe. Já existe oferta universal de ensino fundamental e de vacinação. O programa precisa ter objetivos claros e mensuráveis. Metas a ser alcançadas. O Bolsa Família deveria estabelecer como meta, por exemplo, assegurar que 80% das crianças beneficiadas hoje na 1ª série estejam concluindo o ensino fundamental dentro de nove anos, na idade esperada. Dar dinheiro às famílias é necessário e deve ser feito de forma permanente. Pode até sair barato. Caro e difícil é capacitar professores, investir pesadamente na qualidade do ensino. Isso o Estado brasileiro não faz."

 

Fabio Motta/AE

Simon Schwartzman, presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets) e ex-presidente do IBGE

O desenho está errado  

"O Bolsa Família se justifica como uma transferência de renda, como um subsídio a famílias em situação de pobreza. Ele está relativamente bem focalizado; os mais pobres ficam com a maior parcela dos recursos, embora ainda haja espaço para melhorar. Mas do ponto de vista educacional o programa não é bem desenhado. O Bolsa Família ajuda crianças que iriam à escola de qualquer maneira, com ou sem dinheiro do governo. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2003 mostram que o Bolsa Família pode aumentar em até 14% a matrícula de crianças entre 5 e 6 anos de idade e até 11% no caso de adolescentes com 16 anos. Mas, no grupo etário que é o foco do programa – crianças entre 7 e 13 anos –, o aumento da matrícula explicado pelo recebimento da bolsa não passa de 2%. Nessa faixa etária, o porcentual de crianças que recebem o Bolsa Família e vão à escola é de quase 100%. Já entre as que não são atendidas pelo governo esse porcentual continua nos 98%. O que faz diferença nessas situações é a existência ou não de escola perto de casa. A exigência da freqüência escolar – uma das condicionalidades do programa – também não funciona. É impossível controlar 11 milhões de famílias de um gabinete em Brasília. Seria muito melhor se o dinheiro fosse aplicado na melhoria das escolas e do sistema educacional brasileiro."

 

Alex Silva/AE

José Márcio Camargo, economista da PUC do Rio e inventor do Bolsa Escola, antecessor do Bolsa Família

Investimento no futuro  

"O Bolsa Escola, e agora o Bolsa Família, é de longe o melhor programa social já implementado no Brasil. É o único que de fato atende os mais pobres e, ao contrário da grande maioria dos programas brasileiros, não investe nos idosos, mas nas crianças. O Bolsa Família é como um investimento no futuro, e não uma transferência de renda. Para isso, é essencial que o governo cobre o cumprimento das condicionalidades. Se o governo só repassa o dinheiro e não exige a presença na escola, apenas 2,3% das crianças beneficiadas assistem a mais de 85% das aulas. Mas quando a freqüência é cobrada esse porcentual sobe para 7%. Outra virtude do Bolsa Família é que seu gasto tem qualidade muito superior à de qualquer outro programa social. Isso é especialmente importante no caso brasileiro, em que grande parte das verbas sociais acaba sendo apropriada pelos mais ricos. No caso das aposentadorias e pensões, por exemplo, 65% do dinheiro fica com os 20% mais ricos da população, enquanto só 2,5% são apropriados pelos 20% mais pobres. No seguro-desemprego, os mais ricos ficam com 40% do dinheiro e os mais pobres, com 25%. O Bolsa Família consegue levar aos mais pobres cerca de 70% dos benefícios. É melhor gastar com o Bolsa Família do que com os outros programas sociais que o governo tem."

 

Marcelo Sant'Anna/Estado de Minas/AE

Ricardo Paes de Barros, coordenador de avaliação de políticas públicas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)

Um passo sensacional  

"O Bolsa Família foi um passo sensacional na política social brasileira. Pela primeira vez na história, implementamos um programa que chega de fato aos pobres. Dos beneficiários do Bolsa Família, 24% não deveriam estar recebendo o dinheiro. Esse porcentual parece alto, e é evidente que precisamos melhorar, mas é um resultado muito bom pelos padrões internacionais. No México, esse porcentual sobe para 37%. O Bolsa Família também ajudou a reduzir a desigualdade no Brasil e explica a queda de mais de 20% na desigualdade no país entre 2001 e 2004. Com o Bolsa Família, o governo pôde saber quem são os verdadeiramente pobres e aliviar um pouco a pobreza. O que precisa ser feito agora é dar a esses pobres oportunidades reais. Para isso, é preciso conhecer as necessidades de cada família e garantir acesso aos outros programas sociais do governo. Essa integração foi realizada no Chile com muito sucesso. Lá, as famílias são acompanhadas por assistentes sociais que fazem o encaminhamento a outros programas. Assim, uma família de pequenos agricultores pobres recebe o bolsa família chileno e também tem acesso ao crédito subsidiado para a agricultura familiar. Se conseguirmos transformar o Bolsa Família numa espécie de porta de entrada da política social, o programa terá um impacto gigantesco sobre a redução da pobreza no Brasil."

 

Beto Barata/AE

Kathy Lindert, coordenadora do setor de desenvolvimento humano do Banco Mundial no Brasil

O melhor da América Latina  

"O Bolsa Família é o programa de transferência de renda mais bem focalizado da América Latina: 73% dos recursos vão para os 20% mais pobres. É um investimento altamente eficiente nos pobres. Os dados da Pnad de 2004 já mostram que o Bolsa Família está levando os pobres a sair da pobreza, e as comparações internacionais mostram de forma clara a qualidade do programa. É uma realização impressionante, em especial se pensarmos na complexidade e no tamanho do Brasil e em sua enorme desigualdade, em que muitas vezes grande parte das despesas públicas, como a Previdência, vai para os mais ricos. Ainda é necessário esperar a confirmação de impactos de mais longo prazo, mas programas semelhantes em outros países tiveram resultados muito positivos. No México, a repetência entre meninas caiu 8,4% e entre meninos, quase 4%. A evasão escolar diminuiu 18% entre meninas e 14% entre meninos. Tudo indica que o programa brasileiro pode ser um passo fundamental para resolver o problema da pobreza entre gerações. O Bolsa Família tem um grande potencial, mas é preciso lembrar que não há solução mágica para a pobreza: são necessários investimentos complementares na qualidade da educação e da saúde, além de assegurar que essas pessoas possam encontrar colocação no mercado de trabalho."

 

A força eleitoral, o uso eleitoreiro

O Bolsa Família não foi concebido para virar
uma máquina de votos, mas já que virou...

Ricardo Stuckert/PR
Lula, cumprindo sua agenda favorita: em campanha e de olho no eleitorado pobre

O Bolsa Família está longe de ser uma iniciativa meramente eleitoreira, destinada unicamente a alavancar a popularidade do governante, mas é inequívoco que tem enorme potencial eleitoral. Na última pesquisa disponível, realizada pelo instituto Datafolha, o presidente Lula aparecia com 39% de intenção de voto no eleitorado em geral. Mas, entre os que recebem benefícios do programa ou conhecem algum beneficiado, o apoio ao presidente dava considerável salto de 9 pontos porcentuais, chegando assim a 48%. Isso explica, em parte, a elevada popularidade de Lula no Nordeste, uma região intensamente contemplada pelos benefícios do Bolsa Família. Em cinco meses, período em que a variação foi calculada, o apoio ao presidente cresceu 15 pontos porcentuais entre os nordestinos que recebem dinheiro do programa. "As pesquisas qualitativas indicam que as pessoas não só recebem o dinheiro como também identificam o programa com o governo e retribuem com votos", analisa o sociólogo Mauro Paulino, diretor do Datafolha. "Isso foi decisivo para aumentar o impacto eleitoral do Bolsa Família."

A crescente associação que o eleitorado pobre faz entre o programa assistencial e o governo federal é resultado da expansão dos benefícios. No governo anterior, havia três programas de transferência de renda, mas que distribuíam valores mais baixos que o Bolsa Família e atingiam um número bem menor de famílias. Agora, com o Bolsa Família transformado num guarda-chuva debaixo do qual se abrigam quatro programas e que atinge quase 9 milhões de famílias, ficou mais fácil associar o benefício ao governo federal. A história pessoal do presidente e a facilidade com que se comunica com as camadas mais humildes da população também são fatores que ajudam a fazer a associação. Os pesquisadores informam que as camadas mais necessitadas tendem a encarar as iniciativas de Lula que lhes beneficiam como se fossem mais autênticas e mais bem-intencionadas, e isso tudo em razão do passado de pobreza do próprio presidente. "Em resumo, pode-se dizer que o governo tem um produto bom para vender e o vendedor também é bom", define um publicitário que trabalhou para o governo tucano e pede para ficar no anonimato.

Com tamanha arma eleitoral nas mãos, o Palácio do Planalto já mandou sinais claros de que não a usará com parcimônia neste ano de corrida presidencial. No início de abril, o governo aumentou o teto de renda para que uma família seja beneficiada. Antes, era de 100 reais per capita. Agora, passou para 120 – o que também amplia o universo de potenciais beneficiários. Além disso, está previsto para logo o aumento no valor dos benefícios. Atualmente, o máximo que uma família pode receber é 95 reais, e, com o aumento, o benefício subirá para até 107 reais. Os dois aumentos – da renda e do benefício – são justificáveis do ponto de vista técnico, pois era preciso neutralizar a inflação do período. "Não é uma decisão eleitoreira", diz Rosani Cunha, secretária de Renda de Cidadania do Ministério do Desenvolvimento Social, que cuida do Bolsa Família. "O que estamos fazendo é recompor o valor de compra do benefício com base em critérios técnicos." Ainda assim, como não há lei alguma que obrigue o governo a aplicar o reajuste, é improvável que o potencial eleitoral do programa não tenha sido sutil e desavisadamente levado em conta.

Se houvesse interesse real do governo federal em afastar qualquer possibilidade de exploração eleitoral do Bolsa Família, a experiência do México poderia servir de inspiração. Dono de um programa de transferência de renda que atende 5 milhões de famílias, e só fica atrás do programa brasileiro em extensão, o México criou um conselho com onze especialistas independentes cuja missão é supervisionar o funcionamento dos seus programas sociais em anos eleitorais. Para evitar vícios de origem, o conselho foi criado pelo governo do México mas sob o comando das Nações Unidas. Como haverá eleição presidencial em julho próximo, o conselho está em pleno funcionamento. Caso constate qualquer irregularidade, mesmo que não seja explicitamente ligada à obtenção de dividendos eleitorais, os membros do conselho comunicam imediatamente as autoridades eleitorais e criminais para que providências sejam adotadas. "O Brasil deveria fazer essa mesma blindagem", diz o professor Marcelo Neri, do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV). Ele acrescenta: "É uma ótima maneira de evitar interferência política, sejam abusos em anos eleitorais, seja o fim do programa quando um novo governo assume".

Montagem sobre fotos Roberto Loffel/Jorge Araujo/Folha Imagem eVidal Cavalcante/AE