terça-feira, fevereiro 28, 2006

Xico Graziano Carnaval rural

OESP


Terça-feira de carnaval. Na ressaca da folia, não parece fácil despertar interesse na escrita. Época de certa amnésia coletiva, Momo inibe a pena do idealismo rural. Escrever sobre o quê?

Eureca! No rebolado da mulata sobressai a pena de avestruz. Sim, bem ali, valorizando traseiros e peitos sensuais, se estampa a marca da agricultura. Em pleno carnaval, quem diria, o adorno saído do campo se destaca na passarela do samba.

Vem de longe essa mania de as pessoas se enfeitarem com penas de pássaros. Generais romanos e gregos já adornavam seus elmos com plumas de avestruz. Faraós egípcios as utilizavam simbolizando a justiça e a verdade. Na Europa, a rainha Maria Antonieta adorava complementar suas vestimentas com penas vistosas.

Por aqui, os indígenas foram pioneiros. Coloridas araras, entre tantos psitacídeos, sempre sofreram tal desventura de perder rabos e asas para a vaidade primitiva. Nas armas de guerra ou caça, o tufo de penas assegura a pontaria de flechas e lanças pontiagudas. Na pajelança, cocares vestem a cabeça para agradar ao sobrenatural.

Modernamente, famosos se tornaram nos lares os espanadores de penas. Na faina doméstica, entretanto, produtos sintéticos substituíram tradicionais apetrechos. Na vaidade humana, ao contrário, o atavismo sobressaiu. As penas da bicharada destacam orelhas e estimulam a luxúria. Faz aparecer.

No carnaval tudo se perdoa. O comércio de plumas sempre dependeu do sacrifício animal e da economia clandestina. Até que chegou a tecnologia. Primeiro, no exterior. Há vinte anos o País passou a importar plumas da África do Sul.

Em 1996 se iniciou a criação nacional de avestruzes, conhecida na zootecnia como estrutiocultura. O palavrão advém do nome científico da ave: Strutio camelus. Segundo a Associação dos Criadores de Avestruzes do Brasil (Acab), a atividade conta atualmente com 2,5 mil criadores e um plantel estimado de 335 mil aves.

A avestruz, tanto quanto a ema brasileira, é classificada como uma ratita, quer dizer, ave corredora, que não sabe voar. Uma espécie adulta produz até 1,5 quilo de plumas. Segundo a Cooperativa de Criadores de Ratitas do Estado de São Paulo, cada quilo de plumas tingidas é vendido, nessa época de carnaval, por R$ 450. Como se vê, produzir pena virou um ramo dos agronegócios.

Moral da história: onde quiser, quem procurar amiúde vai encontrar o trabalho do agricultor entremeado nas frestas da sociedade de consumo. A pergunta é recorrente: por que, sendo assim, presente em tudo, até mesmo nas alegorias do carnaval, continua a agricultura tão desvalorizada, esquecida como forma original de riqueza?

Difícil responder. Parte do fenômeno cultural se explica observando o próprio carnaval. Durante dias só aparecem luzes, festa, multidão, beleza, luxúria. O modo de vida rural é oposto a tudo isso. É quieto, distante, singelo. Quando o folião vai dormir, o trabalhador rural está acordando.

Talvez nem o próprio agricultor se aperceba de sua força e importância para a sociedade moderna. As múltiplas conexões da economia o colocam distante do consumidor final e este, por sua vez, fica longe do labor na terra. Tome outro exemplo: a cerveja.

Sem a cevada não existiria a gelada bebida que encharca mentes e embebeda a alma. Na Região Sul, especialmente no Paraná, 140 mil hectares de terra são cultivados anualmente para produzir o grão que, germinado e fermentado, se transforma na apreciada bebida. Nenhum jovem alegre ou barrigudo beberrão se lembra disso quando sorve seu gole. Mas lá dentro, misturado na espuma da cervejinha gelada, está o suor do agricultor.

Na cachaça, que também corre solta nessas farras carnavalescas, mais fácil se percebe a relação entre a bebida e a terra. Todos sabem, embora nem sempre se lembrem, que a matéria-prima da aguardente é a cana-de-açúcar, típica lavoura agrícola. Cada gole da "mardita" esconde um pedacinho do trabalho rural.

A Império da Casa Verde, escola de samba campeã de 2005 em São Paulo, desfila neste ano enaltecendo o boi-capim. Trata-se de justa homenagem aos 100 anos da introdução da raça nelore no País, aquele gado branco com corcunda nas costas. Trazido da Índia, tornou-se a base do rebanho nacional.

Diz o samba-enredo da Império: "Pode aplaudir a saga desse gado brasileiro, hoje um orgulho nacional." Faz assim justiça com a verdadeira epopéia protagonizada por audaciosos pecuaristas nacionais que se aventuraram pela Índia atrás da genética do gado zebuíno, trazendo o bife para a mesa do operário urbano.

O mundo rural, particularmente a pecuária, se felicita com a homenagem que recebe na passarela paulista. Parabéns à turma do nelore brasileiro. Todavia ainda é pouco. Bom mesmo será quando cada mulata enfeitada com pluma de avestruz tiver, ao entrar na avenida, plena consciência sobre a origem de seu adereço.

Somente um bom marketing ruralista será capaz dessa proeza. Aos agricultores, portanto, não adianta lamentar seu esquecimento nesse mundo dominado pelo instantâneo. Cabe a eles descobrir a linguagem da comunicação e aprender a divulgar o valor de seu trabalho na terra. Afinal, ninguém valoriza aquilo que desconhece.

No próximo carnaval, quem sabe, alguma escola do Rio sai vestida com o vermelho do grão de café maduro. E, na Bahia, algum bloco se lembre do produtor de feijão, responsável pelo acarajé, ou do de mandioca, que sem ele ninguém comeria tapioca. Manda um axé na celebração. E viva o carnaval rural!