domingo, fevereiro 26, 2006

O poder americano, por Chomsky Maldito

OESP
O poder americano, por Chomsky Maldito

Palestras do ligüista feitas nos anos 80 e 90 falam da supremacia desse império que ele deseja, antes de explodir, reformar

Rosane Pavam
ESPECIAL PARA O ESTADO

Ler este livro é, mais do que entender os mecanismos de poder, compreender Noam Chomsky. Aqui sabemos por que o renomado lingüista se ateve ao estudo da dominação americana. E entendemos por que, passados os anos 60, este senhor nascido em 1928 ainda milita por causas populares. A razão é que, para ele, aquela década se viu interrompida em seu caminho de transformações, não pelos próprios erros, mas pela supremacia desse império que ele deseja, antes de explodir, reformar.

Chomsky se encontra em algumas das teses do liberalismo clássico de Adam Smith. Isto explica em parte por que o elogiam os pesos-pesados da imprensa americana, como o jornal The New York Times, apesar de este veículo, como os demais daquele país, ser contestado no livro pelo próprio Chomsky. O ponto mais fundo de identificação deste pensador não está, contudo, em Smith, mas em Bakunin e no anarco-sindicalismo americano dos anos 20. Para ele, tanto Smith quanto Bakunin teriam rejeitado a lógica capitalista atual e pregado uma liberdade de atuação que os moldes atuais de concentração corporativa não permitem. Chomsky está cansado de ver o Estado americano inflar os gastos públicos em favor de uma indústria tecnológica de guerra, enriquecendo-se mas tornando o ar irrespirável à liberdade. Quem irá condená-lo por isso, especialmente nestes dias?

Para Entender o Poder - O Melhor de Noam Chomsky traz as palestras de sua militância pelos Estados Unidos nos anos 80 e 90. Não há espaço aqui para ele analisar as causas do terror recente (isto foi feito em 11 de Setembro). Mas sua investigação da história é importante para a compreensão dos primórdios. Por décadas, Chomsky vem pesquisando nos próprios arquivos do governo americano os dados aterradores que apresenta. Numa competente edição de perguntas e respostas, feita pelos defensores públicos da cidade de Nova York., Peter R. Mitchell e John Schoefiel, conhecemos sua principal qualidade, a clareza de expor.

O intelectual usufrui da liberdade de expressão que, reconhece, somente os Estados Unidos podem, à época das conferências, lhe dar. Para lançar suas sementes reformistas, ele lembra que o país nem sempre confinou as reflexões a salões universitários como aqueles. Nos anos 20, diz, tais discussões poderiam ser feitas em sindicatos e salões paroquiais, porque eram populares. Depois da queda da bolsa em 1929, a saída para o modelo capitalista foi esquentar a produção das grandes empresas e deixar de investir em gastos sociais, que até se provariam mais lucrativos, mas seriam pouco eficazes no sentido de estreitar a ação econômica. Se não nos educamos, não pensamos. E, se não pensamos, somos escravos pagos pelos grandes conglomerados, deixando o poder àqueles poucos de eleição.

Chomsky afirma que Marx foi antes um teórico do capitalismo que um filósofo socialista – analisou o que via, mas não compreendeu o que viria, daí porque se dizer marxista, a seu ver, é falar erroneamente. Não se pode, ele diz, aderir a um homem sem considerar que, por grandioso que seja, seu pensamento provou equívocos com o tempo. E se Chomsky não é marxista, o que ele é? Ele deseja retomar a história a um ponto anterior. Quer saber como estaria a civilização agora se Lenin e Trotsky, em lugar de frear o socialismo à espera da revolução alemã e das “condições históricas favoráveis” à Rússia, tivessem tratado seus comandados com liberdade. A história seria outra? Talvez sim.

E então ele chega ao ponto em que seu livro realmente faísca, aquele em que desfila as denúncias das atrocidades da América em relação a seus súditos. Um Estado pratica o terror como extensão dos negócios quando seus negócios constituem o domínio. Para isso, segundo essa lógica, conta com a colaboração de outros Estados-satélites terroristas.

Ao contrário da sangrenta União Soviética, os EUA, em sua história, teriam metido o bico muito além das nações fronteiriças. Mais: ele crê que a guerra fria foi “esquentada” pelos americanos. Os soviéticos nunca teriam reunido o poderio nuclear alardeado por John Kennedy. Se tivessem, depois da invasão da baía dos Porcos, não permitiriam sem revide que a chamada Doutrina Mongoose dos americanos explodisse, por exemplo, quatrocentos trabalhadores dentro de uma fábrica cubana numa simples ação de sabotagem.

Chomsky diz que, desde Ronald Reagan, os EUA invadiram países indefesos – como Granada – apenas para exibir poder. Mataram-se milhares nestes lugares, mas matou-se rapidamente, para que a opinião pública se satisfizesse com um estabelecimento rápido das intenções americanas. Quando as coisas chegam a ficar como, atualmente, no Iraque, e antes dele, no Vietnã... a população tem tempo de contar seus mortos. É melhor fomentar o extermínio à distância, como em Timor Leste ou no Camboja, e eximir-se da autoria, como fez o presidente dos direitos humanos Jimmy Carter, responsável direto, diz Chomsky, pela morte de 600 mil no Timor, sem que a imprensa americana desse crédito ao fato.

As denúncias são duras, como aquela que mostra o desmantelamento da resistência européia e a refacção das estruturas fascistas, pelos próprios americanos, depois da Segunda Guerra Mundial. Foi na Itália e especialmente na Grécia que o extermínio dos resistentes se promoveu, e a crença de Chomsky para isso é simples: o fascismo se adequava aos interesses econômicos dos Estados Unidos e Inglaterra mais do que o comunismo soviético.

Em duas ocasiões, Chomsky cita o Brasil, e o credita à órbita colonial americana. Por esta razão, embora estivessem em condições de paridade econômica com a Rússia dos anos 10, os brasileiros não se teriam desenvolvido como os russos até os anos 90, pelo menos não os 80 por cento da população que vivem como na África Central. Também somos o país em cujo nordeste os cérebros perderam 40 por cento de sua capacidade, dada a desnutrição... Chomsky não se detém no poder brasileiro de organizar o pensamento e a arte. Ele quer ser contundente, não sutil. E então nos vemos diante de um livro importante, porém sombrio, em que seu autor nos dá um mapa aéreo do poder sem descer aos vales. Vistos por ele, somos pequenos e indefesos, embora não o sejamos, obrigatoriamente, o tempo todo.

Rosane Pavam é jornalista, autora de Ugo Giorgetti: O Sonho Intacto