quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Lula e suas teses Roberto Macedo

OESP


Sabidamente, o presidente Lula nunca foi chegado aos bancos escolares e acadêmicos, e até se orgulha disso. Nem se tem notícia do que já leu ou escreveu. Mas nada disso o impede de defender teses em seus pronunciamentos, ainda que muitas vezes de forma superficial e sem argumentos bem fundamentados. Na terça-feira, no interior de Estados nordestinos, turbinado por forte calor e audiências complacentes, falando pelos cotovelos, pelos poros e candidatíssimo, lançou várias teses desse tipo, que tomaram bastante espaço nos jornais de ontem.

Mas o que é uma tese, essa questão que tanto atormenta estudantes e pesquisadores em busca de reconhecimento entre seus pares e de titulação e avanço nas suas carreiras? Fui esclarecido por um de meus orientadores, o professor Lance Taylor, ao me dizer, no início de meu trabalho com ele, que eu teria uma tese na minha área se: I) formulasse uma pergunta original no contexto da literatura sobre o assunto e a respondesse; II) desse resposta original a uma pergunta já formulada e respondida de uma ou mais outras formas; III) demonstrasse estar(em) errada(s) a(s) já conhecida(s) resposta(s) a uma determinada pergunta. Esse professor também me esclareceu que as teses dos tipos I e II em princípio são de sustentação mais difícil, pois a pergunta tem de ser limitada no seu alcance, mas dentro dele a resposta precisa ser sustentável de um modo geral. Já a do tipo III é mais fácil de ser defendida, pois basta dar um exemplo em contrário para demonstrar que uma resposta não é válida em geral.

As teses formuladas por Lula nessa rodada de campanha pelo Nordeste podem ser enquadradas nos tipos I e III. Assim, ele propôs uma tese do tipo I quando afirmou em Juazeiro (BA): "Duvido que desde o dia em que o Brasil foi descoberto teve algum governo que cuidou mais dos pobres da Bahia do que nós estamos cuidando neste governo. Duvido." Trata-se de uma pergunta original, e ele a responde pela própria maneira com que foi formulada. É uma tese de sustentação arriscada, pois menospreza o que aconteceu em cinco séculos de história baiana. Não a conheço para contestar essa tese com outra do tipo III retirada dessa história, tarefa que poderá ocupar algum estudante ou pesquisador à procura de temas para trabalhar. Entretanto, olhando a história nacional e lembrando que a Bahia tinha uma grande participação de escravos na sua população, Lula está se colocando acima do papel da princesa Isabel na libertação desses escravos. Isso parece derivar de um enfoque metodológico em que a ênfase no convencimento se sobrepõe à carência de conhecimento, em particular sobre o passado. Antes, era o nada.

Noutra tese, afirmou: "Muitas vezes você passa numa cidade ou num Estado, a obra está sendo feita com o dinheiro do governo federal e, com a maior desfaçatez, o político vai para a televisão dizer que a obra é dele. E as pessoas não percebem que a gente sabe." Exemplificou com o programa federal Luz para Todos, cujo benefício para uma cidade teria sido atribuído por um deputado ao governador do Estado. Nessa sua tese, do tipo III, Lula inicialmente se sai bem ao apresentar um exemplo em contrário, o que também demonstra a pertinência das observações de meu orientador. Entretanto a tese de Lula é vulnerável sob outra ótica, pois nos seus desdobramentos pode também ser vista como uma tese do tipo I.

Ou seja, ele põe a questão de políticos que assumem a paternidade de obras alheias e dá a entender que quem faz isso são os outros, não ele. Novamente se pode contestá-lo com uma tese do tipo III, ou seja, um exemplo de que ele faz a mesma coisa. Assim, disse em Arapiraca (AL) que na Bahia, de onde viera, "temos 1,08 milhão de pessoas recebendo o Bolsa-Família". Ora, esse programa é na sua essência um conjunto de programas herdados da gestão FHC, como o Bolsa-Escola e o Vale-Gás. É certo que esse conjunto foi ampliado na administração atual, mas não veio do zero para o número de que o presidente-candidato se vangloriou. Ou seja, grande parte resultou da ação do governo anterior. Novamente, para Lula, antes era o nada.

Em mais uma tese do tipo I, atacou a "elite" que o precedeu no governo, afirmando que o seu está "fazendo história" ao "repartir com os pobres o dinheiro arrecadado com (sic) os ricos". Mais uma vez, uma tese do tipo III refuta sua afirmação. Historicamente, os impostos brasileiros são predominantemente indiretos e sobre o consumo, o que torna sua incidência relativamente maior sobre as classes de baixa renda. Ou seja, os pobres também recebem do governo dinheiro arrecadado deles mesmos. E mais: para expandir seus gastos, Lula vem ampliando a dívida pública, cujos juros remuneram os mais ricos. Portanto aí há até dinheiro dos pobres indo para os ricos.

A última afirmação que abordarei beira a tautologia, ao afirmar Lula: "Sou nordestino porque o sangue que corre na minha veia é de matuto do Nordeste." Como nasceu na região, basta isso para qualificá-lo como nordestino, e assim ele parece dizer que é nordestino porque é nordestino, uma condição que independe do sangue que lhe corre pelas veias.

Se for a outras regiões com o mesmo calor e entusiasmo, talvez venha a dizer que é sulista porque aprecia o vinho da região, mineiro porque gosta de queijos, e por aí afora. Essas teses metafóricas seriam irrefutáveis porque formuladas no plano da crença pessoal, e não da ciência. Mas mesmo as outras teses acima citadas se enquadram na categoria do "acredite se quiser", pois não se sustentam na realidade.

Em particular, elas mostram um Lula modernista a romper com o passado, "fazendo história", como se tudo começasse com ele, mas ignorando o mundo de hoje, pós-moderno. Neste, novamente se resgata o passado, entre outras razões, porque só a partir do seu reexame será possível construir um futuro melhor para o Brasil.