sábado, janeiro 28, 2006

FERNANDO GABEIRA Lamentos de um morador de Ipanema

FSP
Lula veio a Queimados, Baixada Fluminense, e fez um discurso já famoso. "Não tenho a cara da zona sul nem da avenida Paulista", afirmou no palanque. Lula é um cara estranho. Quando veio ao Rio receber o apoio dos artistas, no Canecão, falou do seu deslumbramento com a zona sul, não esperava jamais estar sendo aclamado ali por gente que admirava, num lugar tão interessante etc.
Se fossemos muito rápidos no gatilho, diríamos que Lula tinha um deslumbramento pela zona sul. Mas, se formos rápido no gatilho agora, diremos que ele tem um certo desprezo pela região, pois divide o mundo entre opressores e oprimidos pelas zonas geográficas.
Não creio em nada disso. Uma vez protestei, fraternalmente, junto ao Professor Luizinho, que desqualificou a visão de Brasil do repórter Larry Rother, do "New York Times", argumentando que era um habitante de Ipanema. Rother, dizia eu, vive cruzando o Brasil e alguns países da América do Sul. Também vivo em Ipanema e passo grande parte dos meus fins de semana tentando conhecer melhor o Brasil. Luizinho aceitou imediatamente o argumento e admitiu que a frase poderia levar a equívocos.
Na década de 60, escrevi um artigo intitulado "As Belas Imagens", reproduzindo um pouco a argumentação existencialista de que o valor de uma pessoa depende de suas escolhas, de seu esforço. Afirmava que não era possível supor que alguém tivesse qualidades intrínsecas apenas porque mora num certo bairro da cidade. Era o auge de Ipanema.
Quase meio século depois, tenho preguiça de retomar o argumento de forma inversamente simétrica: não há nenhum defeito intrínseco em morar num determinado bairro. Se alguém quiser dividir o mundo entre oprimidos e opressores e disser que os segundos moram na zona sul do Rio, vai ter que abstrair milhões de pessoas -as que moram no morro e os brasileiros de todos os horizontes que vivem em Copacabana, por exemplo.
Não é para se fazer uma discussão séria. Lula estava no palanque de Queimados ao lado de Lindeberg Farias, um jovem de muitas qualidades e, além disso, bonito. Ele ganhou as eleições em Nova Iguaçu com mais facilidades, segundo o relato dos jornais, porque era considerado lindo pelas suas eleitoras. No momento em que era preciso se implantar na Baixada com mais sucesso, o PT não hesitou em usar também, além da habilidade de Lindeberg, sua cara bonita. Portanto, é uma tática de ziguezagues: num momento, você usa a estética para ampliar seus votos, em outro momento você afirma uma cara sofrida para buscar uma identificação com o eleitorado da região.
O engraçado é que estavam os dois no mesmo palanque, talvez rindo de nós, que pedimos coerência. Por isso é que não dá para ficar zangado quando o presidente de todos os brasileiros rejeita publicamente os moradores do lugar onde você mora. Não é uma rejeição séria, como não é sério o deslumbramento. Tudo depende da hora, do lugar e dos votos.
No caso da avenida Paulista, mesmo quem não mora em São Paulo se surpreende com a afirmação do presidente. Tudo de bom que acontece na cidade acaba sendo comemorado na avenida Paulista. Títulos mundiais de futebol, vitórias em campanhas presidenciais. Lula foi diretamente do hotel para a avenida Paulista, no dia de sua eleição. As ruas estavam cheias de gente do povo. Uma boa formulação para aquele dia: "Estou aqui, mas lembrem-se de que não tenho a cara da avenida Paulista, por isso vou ficar de costas para os prédios e olhar apenas para vocês".
Apesar de tudo, há muita gente na zona sul que ainda admira Lula, e ele ainda tem chance de corrigir o equívoco. Palanque é um lugar onde se fala tudo e os jornalistas sequer anotam. No entanto, quando você é presidente da República e está num palanque, cada frase tem de ser pensada, por mais difícil que seja emocionar-se e, simultaneamente, medir as palavras.
Tudo isso, na verdade, é um pequeno distúrbio de papéis. Lula encarnou o presidente Hugo Chávez e resolveu entrar na distinção entre ricos e pobres. Mas o clima está mais para Juscelino. Ele deveria voltar a um centro espírita e reencarnar o Juscelino. Tenho um amigo em Copacabana, o Almeida, que vive pedindo a construção de um centro para a terceira idade no bairro, com projeto de Oscar Niemeyer. Isso poderia ser ainda melhor para nós do que foi a igreja da Pampulha em Belo Horizonte.
Entre os idosos da zona sul, vindos de todos os recantos do Brasil, essa história de norte-sul, nós e eles, essas fronteiras que criamos e alimentamos em palanques não têm grande sentido.
Um dia tudo isso passará, e tanto o Lula como o Professor Luizinho, esse já convidado, vão colocar uma Havaianas e bermudas e passear conosco pela zona sul. Amainadas as paixões, é surpreendente como todos os seres humanos são parecidos, ainda mais de bermuda e Havaianas.
Não posso falar por toda a Ipanema, mas a sensação que temos aqui, do Jardim de Alah à praça General Osório, é de que todas as caras são bem-vindas.
Uma vez integradas à paisagem, expressam uma incrível diversidade e apontam para uma unidade que não se destrói: a cara do ser humano.