O bonde passa, de novo |
30/1/2006 |
A mais perversa forma da famosa impontualidade latino-americana é a que se manifesta no hábito de perder o bonde da História. Um claro sinal de que o bonde está sendo novamente perdido é o baixo crescimento da maior parte da América Latina, enquanto outras economias em desenvolvimento, especialmente na Ásia, aproveitam o dinamismo do mercado global e se transformam com rapidez. O mundo percebe esse contraste e essa percepção foi revelada sem disfarce na reunião do Fórum Econômico Mundial, em Davos. Enquanto Índia e China ocupavam enorme espaço na pauta de palestras, debates e entrevistas, a agenda do encontro reunia mexicanos e brasileiros num almoço, para discutir as causas de seu modesto crescimento nos últimos anos. Num ambiente de quase depressão, empresários e políticos dedicaram-se a um exercício penoso de auto-análise e o resultado, afinal, não foi desprezível. O ministro do Desenvolvimento, Luiz Furlan, comentou, horas depois, que os latino-americanos pelo menos aprenderam a não mais culpar os outros por seus problemas. O ministro está certo apenas em parte. O discurso populista, que volta ser ouvido na América Latina, retoma o velho mote da voracidade imperialista como fonte de todos os males. A retórica do presidente venezuelano Hugo Chávez é somente o exemplo mais notório e não um caso isolado. Em vez desse tipo de retórica, o que se ouviu naquele encontro foi um conjunto de análises nem sempre novas, mas, de modo geral, bastante realistas. Um detalhe especialmente importante é que nenhum dos empresários e políticos se deixou enredar na discussão de questões conjunturais. Além disso, ninguém contestou as vantagens da estabilidade fiscal e monetária alcançada, penosamente, na maior parte da região. É preciso promover o crescimento que falta a partir dessa estabilidade, e não ao custo de um retorno aos velhos desequilíbrios. Esse pormenor mostra que, apesar de tudo, parte dos empresários e dos políticos da América Latina aprendeu algo com a experiência das últimas décadas. Não o suficiente para liquidar certos hábitos tradicionais, mas, de toda forma, alguma transformação de mentalidade ocorreu. Uma das intervenções mais interessantes foi a do ex-presidente mexicano Ernesto Zedillo. A América Latina, observou Zedillo, teve muitos Estados autoritários, mas não teve, e continua sem ter, Estados fortes, capazes de executar suas funções básicas, incluída a oferta básica de educação. Não há império da lei quando os Estados são fracos e isso dificulta o funcionamento da economia de mercado. Não basta, disse o ex-presidente, escolher boas políticas: é preciso dispor de instituições adequadas para executá-las. Seu discurso foi genérico, mas é claramente aplicável à maior parte da América Latina, incluído o Brasil. O descompasso entre as instituições e as necessidades objetivas do País é uma das causas principais do baixo dinamismo brasileiro. A estrutura do orçamento é inadequada e favorece o desperdício de recursos. O sistema tributário funciona para alimentar um orçamento mal concebido e inflexível e não para ajudar o funcionamento de uma economia moderna e integrada globalmente. A separação entre objetivos de governo e objetivos de Estado nem sempre é clara e o enfraquecimento das agências reguladoras perpetua essa disfunção. O excesso de burocracia, percebido e denunciado pelos empresários, reflete menos o interesse efetivo do Estado que o poder de grupos de interesse instalados no setor público e em certas áreas privadas. É outro sintoma da fraqueza do Estado. A tirania burocrática não é um peso somente para os negócios e, de modo geral, para a chamada sociedade civil. É um entrave também para o poder público, pois consome energias e dificulta sua operação. Se isso é verdade, por que não se reforma o aparelho estatal? Porque é preciso, para isso, derrubar interesses muito bem defendidos. No caso do atual governo brasileiro, o problema é agravado pelas velhas ligações entre o funcionalismo público, especialmente o federal, e o PT. O quadro das deficiências latino-americanas se completa com a incapacidade, ainda dominante em vários segmentos políticos, de perceber que a região não é o mundo e que é preciso tomar como referência os melhores padrões globais. Alguém pode duvidar de que essa falha de percepção seja uma das causas principais do fiasco do Mercosul? |