domingo, janeiro 01, 2006

Editorial da Folha de S Paulo

GOVERNAR POR DECRETO

Quando na oposição, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva classificou o uso excessivo de medidas provisórias como "forma autoritária de governar". Antes dele, também como oposicionista, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso era ainda mais enfático. Dizia que a "enxurrada de MPs" conspurcava a própria democracia. A retórica não os impediu de, uma vez instalados no poder, usar e abusar desse instrumento legislativo emergencial.
É nesse contexto que foi submetida ao Senado a proposta de emenda constitucional nº 72, do senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA), que altera as regras de tramitação das MPs, conferindo mais controle ao Congresso Nacional.
Todo governo democrático precisa de um instrumento para legislar em casos de urgência. Há situações em que aguardar os trâmites parlamentares prejudicaria o país. Mas daí não se segue que o Executivo possa governar por decreto e esperar que o Congresso apenas homologue suas propostas. MPs precisariam, como diz a Constituição, ser reservadas para casos realmente excepcionais -de relevância e urgência-, e o Parlamento deveria ser célere em aprová-las ou rejeitá-las.
Esse, contudo, nunca foi o caso. Até 2001, o governo usava e abusava dessas medidas, que podiam ser reeditadas indefinidamente, e os congressistas se furtavam às suas responsabilidades, deixando de apreciá-las. Para pôr fim a essa situação, aprovou-se a emenda constitucional nº 32, que mudou a tramitação das MPs. Elas passaram a ser válidas por apenas 30 dias prorrogáveis uma única vez por mais 30. A fim de garantir que o Legislativo as apreciaria, definiu-se que, a partir do 45º dia, as MPs passariam a trancar a pauta, impedindo que qualquer outro projeto fosse votado antes delas.
Em termos institucionais, a situação melhorou -o governo já não governa por reedições de MPs-, mas a pauta do Congresso ficou a reboque da caneta do Planalto, que não conteve sua sanha legiferante.
Os parlamentares, como é óbvio, não gostam de ter o ritmo de suas atividades ditado pelo Executivo. Assim, o que o senador do PFL baiano propõe é que as MPs, antes de vigorar, tenham sua admissibilidade aceita por uma comissão encarregada de avaliar sua constitucionalidade. Se a comissão negá-la, o Executivo poderá recorrer ao plenário da Casa. Caso este também conclua pela inadmissibilidade da matéria, ou não se manifeste no prazo previsto, a MP será convertida em projeto de lei.
Vale notar que o Congresso já tem pelas normas vigentes o poder de considerar MPs inadmissíveis, mas raramente se vale dessa prerrogativa.
O risco aqui é que se troque o atual excesso de poder conferido ao governo pela "ditadura" dos congressistas. A idéia é preocupante quando se considera que ambas as Casas são pródigas em perder prazos e ignorar matérias importantes. Se a proposta for aprovada não será desprezível o perigo de um confronto mais agudo entre os dois Poderes.
Pode-se e deve-se tentar aprimorar as regras de tramitação das MPs. Mas não estamos diante apenas de uma questão de técnica legislativa, mas também de amadurecimento democrático. É preciso fortalecer o entendimento de que a MP deve ser usada de maneira parcimoniosa, sem o que, os problemas continuarão a existir, mude-se ou não a lei.