Folha de S Paulo
As eleições palestinas assinalaram o encerramento de um ciclo histórico. A direção do Fatah, o partido dirigente da OLP construído por Iasser Arafat, sofreu uma dupla derrota. Externamente, o Hamas emergiu como força política decisiva, contestando os fundamentos do programa do nacionalismo palestino. Internamente, a facção de Marwan Barghouti, o líder das intifadas preso em Israel, evidenciou que tem o apoio popular do qual carece Abu Mazen, o presidente da Autoridade Palestina e sucessor de Arafat.
Abu Mazen, agora, só existe como projeção fantasmagórica das relações entre Israel, os EUA e a Autoridade Palestina. Ele é o único interlocutor admitido por Israel e pelos EUA, mas não representa a vontade dos palestinos. Essa equação, aparentemente insolúvel, condena a região à continuidade da violência e, no limite, ameaça implodir a OLP. O fundamentalismo e o jihadismo tendem a preencher o vácuo político.
Os Acordos de Oslo, de 1993, foram costurados à luz do paradigma de que a solução da questão palestina seria a chave para a estabilização geopolítica do Oriente Médio. A paz com Israel e a construção de um Estado palestino viável e democrático funcionaram como antídoto contra o terror jihadista em toda a região e estabeleceriam um novo modelo político para as sociedades árabes. Os grupos fundamentalistas se veriam privados da bandeira de arregimentação proporcionada pelo sofrimento palestino. As ditaduras teocráticas, como a monarquia saudita, e os regimes autoritários seculares, como os do Egito e da Síria, seriam confrontados com o exemplo de uma democracia árabe.
O paradigma sobreviveu à erosão do crônico impasse do processo de paz, mas não resistiu ao fogo concentrado da Doutrina Bush. Depois de 11 de setembro de 2001, os EUA promoveram uma inversão conceitual, passando a afirmar que a estabilização do Oriente Médio é que seria a chave para a solução da questão palestina. A invasão do Iraque e a ofensiva destinada a derrubar o regime da Síria foram apresentadas como elementos de um programa redentor, de difusão da liberdade no mundo muçulmano. Em Israel, o governo de Ariel Sharon extraiu o máximo proveito dessa estratégia, convertendo-a em justificativa para a sua política de interrupção das negociações de paz e definição unilateral de fronteiras.
Sob a Doutrina Bush, o Oriente Médio conhece a crise do nacionalismo árabe e a expansão do fundamentalismo. O Iraque oscila entre a guerra civil e a teocracia xiita. O Irã renuncia às reformas e embarca numa aventura nuclear. Os palestinos votam em massa no movimento islâmico que prega a destruição de Israel. As sementes do "choque de civilizações", regadas pela política de Washington, germinam como árvores de ódio.
Abu Mazen proclamou que as eleições palestinas abririam caminho para a aplicação do princípio de "um governo, uma lei, uma arma". Mas os EUA e Israel declararam que não sentarão para negociar com um governo palestino integrado por ministros do Hamas. A trágica ironia é que esse governo, se vier a se constituir, será o fruto do único processo eleitoral relativamente democrático no Oriente Médio árabe. Por isso, cedo ou tarde, os fatos confirmarão as palavras de Sami Abou Zohri, porta-voz do Hamas: "Os ocidentais não terão escolha a não ser nos aceitar".