domingo, janeiro 29, 2006

As memórias casuais de FHC, para americano ler

FSP

VINICIUS TORRES FREIRE
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

A rainha da Inglaterra, muito agradável, ensinou a Fernando Henrique e Ruth Cardoso como abrir e fechar as gavetas de roupas dos aposentos de hóspedes do Palácio de Buckinghan. Lady Diana disse a FHC que os homens brasileiros eram vaidosos. Mas a preferida do ex-presidente na família real era mesmo a rainha-mãe.
No livro que FHC lança nos EUA em março, tais anedotas merecem tanto espaço quanto, por exemplo, a privatização das teles. "The Accidental President of Brazil - A Memoir" ("Presidente do Brasil por Acaso - Memória") é uma autobiografia leve, livro de esquetes e anedotas temperado por resumos colegiais de história do Brasil para estrangeiros. Sem fatos ou idéias novas e rascantes.
FHC prepara outra autobiografia, para a editora Record. Também deve ser lançada em março e por ora leva o título "Minhas Memórias do Poder". Os poucos que leram partes do livro, tratado como secretíssimo, dizem que o volume brasileiro é mais forte.
O "Presidente por Acaso" começa com a narrativa das origens quase patrícias do ex-presidente. Na famosa litografia, o avô de FHC é um dos oficiais republicanos que levam a ordem de exílio ao deposto imperador Pedro 2. A avó filha da burguesia comercial carioca e freqüentadora da corte dos Bragança horroriza-se na visita que faz ao rústico Goiás governado pelo bisavô Cardoso. Pai e parentes são generais, conselheiros e amigos de presidentes, e por vezes rebeldes e presos políticos.

Brasil inzoneiro
O ex-presidente pinta os políticos brasileiros com um colorido bananeiro e com seu suave, irônico e simpático esnobismo. Getúlio Vargas, esboçado com mais detalhe e respeito, aparece metralhando ele mesmo integralistas que atacavam seu palácio em 1938. Carnaval, café, futebol, cordialidade, compadrio e jeitinho são assuntos recorrentes. FHC parece mais um ensaísta dos anos 30 e 40 do que o sociólogo industrial e político que foi.
O olho torto de Jânio Quadros, "feio, bêbado, mulherengo, tolo e irresponsável" e uma das obsessões do livro, merece meia dúzia de menções. FHC seria derrotado por Jânio na eleição para prefeito de São Paulo em 1985, derrota e campanha sórdida que pelo jeito o marcaram muito. Foi nessa campanha que FHC deu uma resposta evasiva sobre sua religião. No livro, o ex-presidente diz que não é ateu e que vai a igrejas.
Da Globo, diz que mentiu sobre a campanha das Diretas Já. De José Sarney, que seu governo foi uma série de desastres. De Fernando Collor quase aceitou o convite para ser chanceler, pois se sentia seduzido pelos seus planos de governo. Da Carta de 1988 diz que era uma lista de desejos irrealista, com privilégios como a semana de 44 horas de trabalho, um projeto anacrônico de Estado de bem-estar social, que então entrava em colapso na Europa. De Florestan Fernandes (1920-1995), fundador da sociologia uspiana e seu mentor, magras linhas.
O Real e seu fim merecem uma narrativa mais cuidada, mas que ainda não faz jus ao intelectual. O real forte acabou pelos seguintes motivos. O mundo globalizado é instável. A imaturidade de Wall Street provoca pânicos e contágios financeiros. Havia enorme déficit público, que tinha de ser coberto com capital estrangeiro, atraído por juros altos. Havia obstinação das elites em impedir reformas como a da Previdência. Havia acusações injustas de corrupção, que aumentavam a desconfiança dos investidores no Brasil. Houve o calote de Itamar Franco governador de Minas.
E nada mais sobre economia, a não ser reformas de mercado.

Sociólogo por acaso
FHC aprendeu a ler aos três anos, teve tutor francês e foi garoto de praia no Rio, horrorizado ao mudar para uma São Paulo rústica, de ruas poeirentas, que sujavam seu sapato bicolor. A idéia de ser sociólogo veio quase por acaso, de um diálogo à beira da piscina em Águas de Lindóia com o crítico português e professor fundador da USP Fidelino de Figueiredo (1888-1967).
O seminário Marx, grupo de estudos do qual participariam os principais cientistas sociais do país, surgiu numa conversa de praia com o filósofo José Arthur Giannotti. Virou chanceler de Itamar num cafezinho na cozinha e foi ministro da Fazenda à revelia.
O sociólogo acidental das memórias de FHC é obcecado com a desigualdade racial e de renda, "herança escravocrata", do descaso com a educação e com a reforma agrária. A instabilidade, o desprezo pela lei e o "jeitinho" brasileiros são estratégias da elite para manter privilégios, como o foi a inflação e como o é o déficit público. O sociólogo seria um ser mais preparado para detectar e operar a mudança estabilizadora no país institucionalmente caótico. Por vezes, a reflexão intimidou e atrapalhou o político. Mas o sociável articulador de consensos reparava o problema.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva surge como um arguto e inovador líder sindical, companheiro de campanhas de FHC, e termina como um desapontamento, um governo incompetente e acusado de corrupção, embora adepto das idéias tucanas. Tal adesão começou, sugere FHC, numa conversa que os dois tiveram no Alvorada, em 98: após ouvir um discurso sobre globalização e o muro de Berlim, Lula nunca mais seria o mesmo, tornando-se menos radical.
José Serra é o outro político nacional vivo mais citado. É o único apenas enaltecido, como Bill Clinton e Nelson Mandela, da grande lista de grandes nomes que FHC conheceu e sobre os quais nada de interessante se passa a saber.