Segundo o ex-ministro José Dirceu "não sobrou nada no Governo Lula". Mas o que terá sobrado de 2005? O tom das retrospectivas de final de ano tem sido pessimista. O ano de 2005 teria sido um desastre na avaliação dos mais radicais. É mais correto afirmar que foi um ano medíocre, tendo em vista a oportunidade de ouro da economia mundial em franca expansão.
Houve coisas boas em 2005. Os são-paulinos talvez estejam mais aptos a brincar de Poliana, ainda inebriados pela conquista do tricampeonato mundial. Foi uma espécie de Papai Noel antecipado em um momento em que as apostas eram de três contra um a favor do Liverpool. E como já escreveu Carlos Drummond de Andrade, "eu sei que futebol é assim mesmo, um dia a gente ganha, outro dia a gente perde, mas por que é que quando a gente ganha, ninguém se lembra que futebol é assim mesmo?"
São-paulino ou não, quem quiser fazer o jogo do otimista vai encontrar algo positivo em 2005. A regulamentação parcial da reforma do Judiciário constitui avanço. A aprovação do projeto de lei de execução judicial vai afetar para melhor a vida de muita gente que tem algo a receber na Justiça e já tinha perdido a esperança de ver a cor do dinheiro. Ainda é pouco para modernizar o Judiciário, mas é um passo na direção correta. Vários outros projetos que estão no Congresso poderiam tornar a Justiça mais acessível e contribuir para o funcionamento da economia.
A derrota da "MP do Mal", a famigerada MP 232, que o governo tentou enfiar goela abaixo na última passagem de ano, foi um marco de resistência contra um Estado que arrecada 37% do PIB. Isso equivale a entregar tudo o que é produzido até meados de abril de um ano qualquer para uma máquina pública inchada que fornece serviços de péssima qualidade.
O "basta" serviu para indicar o caminho a seguir, mas ainda não gerou o essencial: corte e racionalização de gastos. Mas pelo menos o cidadão poderá festejar a entrada de 2006 sem receio de novo pacote de impostos na noite de Réveillon. Já é alguma coisa. A própria "MP do Bem", apesar de ter se tornado uma colcha de retalhos, desonerou alguns segmentos produtivos.
Como o futebol, o ano é cheio de surpresas. Quem imaginaria que um argentino seria considerado, com plena justiça, o melhor jogador do Campeonato Brasileiro? A economia argentina lembra aquele Chevrolet viking 1958 que aos trancos e barrancos atravessou o país vizinho rumo à fronteira com o Brasil no belo filme "Família Rodante", de Pablo Trapero. O crescimento argentino nos últimos três anos é de dar inveja: média de cerca de 8% ao ano, algo que o Brasil não experimenta desde os anos 70.
Apesar de vistosa, essa expansão é frágil. A inflação argentina já ultrapassou a perigosa barreira dos dois dígitos em 2005 e ninguém acredita que os acordos setoriais de preços promovidos pelo governo Kirchner vão servir para alguma coisa. A não ser para gerar ilusão e escassez de produtos no mercado. Mas muita gente faz um balanço favorável de 2005 para o parceiro do Mercosul. Ontem à tarde mesmo, o painel de votação do jornal "La Nación" registrava que 42% das pessoas que responderam à consulta daquele jornal achavam que 2005 tinha sido melhor do que 2004. Desconfio de que o resultado seria diferente no Brasil.
Comparada aos desequilíbrios da Argentina, a economia brasileira está melhor. É um carro em melhor estado, que no entanto anda com a roda presa e meio sem rumo. Não há, por exemplo, qualquer estratégia para a infra-estrutura. A não ser um tapa-buraco nas estradas às vésperas das eleições.
É positivo que a inflação esteja em patamares civilizados. O IPCA deverá fechar 2005 em 5,6%; o IGP-M deu 1,21%, o mínimo histórico da série do índice. O IGP-M é muito sensível às oscilações do dólar. Como o real apreciou cerca de 12% neste ano, os bens de comércio exterior ficaram relativamente mais baratos, contribuindo de forma decisiva para a queda da inflação. Algo similar ocorreu em 1998, quando o real apreciou fortemente e o IGP-M acusou somente 1,8%.
Não há nada de estruturalmente errado com o sistema brasileiro de metas de inflação. Mas o Banco Central errou na mão nos juros. Uma trajetória um pouco menos conservadora nos juros e uma melhor comunicação com o mercado teriam contribuído para um crescimento um pouco maior do que os modestos 2,6% estimados. E não teria acentuado de maneira excessiva a tendência já presente de apreciação da taxa de câmbio, comprometendo a rentabilidade do setor exportador.
As frustrações de 2005 encerram, portanto, lições úteis. E de novo Drummond ensina através do futebol, ao refletir sobre a Copa perdida em 1974: "Perder é uma forma de aprender. E ganhar, uma forma de se esquecer o que se aprendeu."
Gesner Oliveira, 49, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP, presidente do Instituto Tendências de Direito e Economia e ex-presidente do Cade.
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