quinta-feira, dezembro 22, 2005

DEMÉTRIO MAGNOLI O muro como metáfora

FSP
A Câmara dos EUA aprovou uma lei que transforma em criminosos 11 milhões de imigrantes ilegais e autoriza a construção de um muro de mil quilômetros na fronteira com o México. Vicente Fox, o presidente mexicano, qualificou a barreira como uma "vergonha". "Os muros caíram no século passado", disse Fox.
O Muro de Berlim é a exceção, pois não separava nações ou etnias, mas sistemas políticos. A regra, vigente desde o encerramento da Primeira Guerra Mundial, é a edificação de muros, materiais ou simbólicos, para separar os "iguais" dos "diferentes". O marco foi a proclamação dos "direitos das nacionalidades", pelo presidente americano Woodrow Wilson, em 1919, que consagrou na política internacional o princípio da identidade: uma nação, uma etnia, uma língua, uma cultura.
O programa da identidade absoluta esquartejou os antigos impérios segundo linhas de fronteiras étnicas, e o mapa da Europa encheu-se de bandeiras nacionais. Mas a identidade absoluta significa, complementarmente, a absolutização da diferença: a produção de minorias nacionais e étnicas. O seu impulso irresistível de uniformização converteu os "diferentes" em alvos de perseguição e, no limite, de extermínio.
A sedução da "limpeza étnica" contaminou toda a história do século 20. Os judeus, vítimas de "limpeza étnica" na Europa, ergueram no Oriente Médio um país só para os judeus, que agora cerca-se por um muro destinado a isolá-lo dos "bárbaros" palestinos. Os povos da antiga Iugoslávia derrubaram seu Estado multinacional e entregaram-se à fabricação de Estados étnicos "perfeitos", recortados de acordo com limites culturais e religiosos. Não é fácil traçar fronteiras separando ruas ou atravessando casas de família: na Palestina e nos Bálcãs, uma guerra é apenas o prelúdio da guerra seguinte.
Os EUA nasceram na contramão do programa da identidade e definiram-se como uma "Nova Jerusalém": a nação de todos que escolheram a liberdade. Hoje, contudo, esse "porto dos imigrantes" parece arrepender-se da sua própria história. Samuel Huntington, o profeta do "choque de civilizações", prosseguiu a sua magistratura do ódio com "Who we are?" (2004), um livro sobre a "essência" da nação americana e um alerta contra a suposta desfiguração nacional provocada pela imigração "hispânica". Huntington é o patrono intelectual do muro na fronteira com o México.
Os intelectuais dedicados à identificação da "essência" das nações simulam uma investigação histórica, mas, de fato, operam pelo cancelamento da história. A técnica baseia-se na seleção de um traço "nacional" singular (a língua, a religião, a cor da pele, uma origem geográfica suposta, um evento imerso nas brumas do passado) e na narração de uma "história nacional" que o reitera, repercute e amplifica. Por meio dela, inevitavelmente, prova-se o que se queria demonstrar: a "França de mil anos", a "Sérvia eterna", a "verdadeira" nação americana, a "Bolívia branca do Chaco", o "ódio ancestral" entre hutus e tutsis, uma "nação afro-brasileira"...
A força dessas imagens, geradas na linha de montagem do charlatanismo intelectual, deriva do seu potencial de organização de interesses políticos e de mobilização de rancores populares. Definindo os "iguais" e os "diferentes", elas riscam no chão o traçado de novos muros.