quinta-feira, dezembro 29, 2005

DEMÉTRIO MAGNOLI O fator BIC

FOLHA

 As conclusões da Conferência Ministerial de Hong Kong representam pouco mais que um disfarce para o impasse que paralisa a Rodada Doha da OMC (Organização Mundial de Comércio). Mas a crise do sistema multilateral de comércio tem dimensões que ultrapassam a própria Rodada Doha. A constatação deve-se a Rubens Ricupero e foi exposta na reunião anual da Rede Latino-Americana de Política Comercial: o comércio global experimenta uma transição histórica marcada pela irresistível ascensão de novas potências exportadoras de produtos agrícolas, manufaturados e serviços. Cedo à tentação de sugerir uma expressão sintética para descrever o fenômeno. É o fator BIC: Brasil, Índia e China.
O Brasil tem sol, água e solo em abundância. Tem as terras baratas que faltam aos Estados Unidos e um potencial de expansão da fronteira agrícola que, por razões naturais, não existe na Argentina e na Austrália. Removam-se as barreiras e subsídios e dominará o comércio mundial de produtos agrícolas, inundando a Europa e a Ásia de soja, carne bovina, frango, açúcar, café e tabaco. A conseqüência seria gerar significativo volume de renda e, portanto, criar consumo nos países desenvolvidos. Mas, num paradoxo que encontra explicação fora da esfera econômica, a União Européia, os Estados Unidos e o Japão aferram-se às redomas que protegem seus agricultores pouco competitivos.
A Índia tem força de trabalho abundante e qualificada. Tem uma história colonial que transformou o inglês na sua língua franca nacional. A dinâmica da globalização transfere para lá setores inteiros da indústria de serviços. As corporações internacionais descobriram as vantagens de estabelecer na Índia uma série de serviços de apoio, como call-centers, vendas de bilhetes aéreos e contabilidade interna. Engenheiros indianos projetam e desenvolvem softwares para empresas americanas e européias. A indústria editorial ensaia deslocar para a Índia os serviços de tradução, ainda pouco internacionalizados.
A China tem chineses. Explorando a sua vantagem competitiva, experimentou um "espetáculo de crescimento" sem precedentes, ostentando durante um quarto de século a taxa média anual de 9,4% de expansão do PIB. Hoje, é o mais dinâmico exportador global de bens de consumo e de bens intermediários. Em 2004, produtos chineses representaram 21% das importações japonesas, 14% das importações americanas e 12% das importações européias. A decolagem industrial da China é a causa principal da mudança de patamar dos preços do petróleo e do persistente crescimento dos preços de diversas commodities. Na outra ponta, as exportações chinesas de manufaturados esclarecem a convivência de baixas taxas de inflação e de juros nos países desenvolvidos e aprofundam a crise mundial do emprego industrial e do movimento sindical.
O sistema multilateral de comércio, concebido no pós-Guerra, funcionou durante meio século como uma engrenagem equilibrada, cuja evolução refletia os padrões pouco contrastantes de produtividade e de custos dos países desenvolvidos. A Rodada Uruguai do GATT (1986-94), encerrada com a criação da OMC, coincidiu com o apogeu e o início do declínio do sistema. A Rodada Doha, convulsionada pelo fator BIC, assinala o seu esgotamento. Em Hong Kong, os ministros só conseguiram evitar o colapso da OMC.