sábado, outubro 15, 2005

VEJA Roberto Pompeu de Toledo Tudo o que é sólido derrete ao sol dos trópicos


O PCdoB que já foi da Albânia e da guerrilha
no Araguaia rasgou
a fantasia e caiu na gandaia

A mais contundente intervenção do comunista Aldo Rebelo no comando de uma sessão da Câmara dos Deputados, até agora, foi uma invocação a Deus. "Por favor, parem com isso, pelo amor de Deus", conclamou, enquanto os deputados Arlindo Chinaglia e Inocêncio Oliveira ameaçavam trocar socos no plenário. O comunismo é uma doutrina materialista que fez sua estréia mundial com um apelo aos fantasmas ("Um fantasma ronda a Europa", diz, em sua primeira linha, o Manifesto de Marx e Engels, de 1848), o que é uma atenuante em favor do novo presidente da Câmara. Mesmo assim, que distância em relação a comunistas da cepa de um Manuel Venâncio Campos da Paz, prócer da época da Aliança Nacional Libertadora e da chamada "Intentona" de 1935. Em seu leito de morte, Campos da Paz foi visitado por um prelado da Igreja Católica, amigo da família, que lhe perguntou se não queria receber os sacramentos. O velho indignou-se: "Não me peça, num momento de fraqueza, que eu renegue tudo aquilo pelo que lutei. Morro como um comunista".

Aldo Rebelo é do PCdoB, partido que já reverenciou Mao Tsé-tung, depois se bandeou para Enver Hoxha, o arquiteto desse prodígio de liberdade, progresso e bem-estar que é a Albânia, e foi ficando cada vez mais engraçado. O PCdoB conta com escassos votos, mas isso não o impede de manter a UNE, que prescinde de eleições diretas, como um seu cartório. Ultimamente a UNE patrocinou a campanha contra a corrupção, contra a política econômica e a favor de Lula. Se ninguém se deu conta do movimento, isso não impede que se admire a fina construção intelectual que foi a junção, numa só, de três causas que a um espírito menos requintado soariam incompatíveis.

Na miudeza de seu dia-a-dia, a UNE/PCdoB consegue algumas vitórias. Em março passado, uma manifestação de três dezenas de seus militantes, em Manaus, conseguiu fazer com que o secretário de Defesa americano, Donald Rumsfeld, deixasse a sede do Sindacta, o sistema de controle do tráfego aéreo na Amazônia, pela porta dos fundos. Na da frente, o orador de plantão invectivava contra o visitante, que ora chamava de "Rothsheld", ora de "Rothfield", segundo anotou o enviado da Folha de S.Paulo ao evento, João Batista Natali. Um cartaz dos manifestantes repudiava aquele que, num inglês complexo, ainda não dominado pelos praticantes nativos desse idioma, era alcunhado de "Sir of War". O PCdoB opera em outro nível. Não ia contentar-se com o mero "Lord of the War" que os praticantes de um inglês mais comum escolheriam para significar "Senhor da Guerra".

Ultimamente, o partido que foi de João Amazonas, hóspede contumaz dos cárceres de diversos regimes brasileiros e propugnador da luta armada para o assalto ao poder, passou a dedicar-se a atrair para suas fileiras figuras que nem de longe se suspeitava abrigassem dentro do peito, batendo calado, um coração comunista. Um deles foi Ademir da Guia, o "Divino", craque incomparável, que além das glórias acumuladas nos gramados mereceu um poema em que João Cabral de Melo Neto descreve seu estilo de jogo com precisão jamais alcançada pelos cronistas esportivos – "Ademir impõe com seu jogo / o ritmo do chumbo (e o peso), / da lesma, da câmara lenta, / do homem dentro do pesadelo". Pobre Ademir. Eleito, pelo PCdoB, vereador em São Paulo, pesadelo igual ao que infligia aos adversários passou a viver quando foi acusado pelos assessores de embolsar-lhes parte dos salários. O ex-craque acabou deixando o partido. Pendurou o comunismo assim como, antes, havia pendurado as chuteiras.

Maior surpresa ainda é esta última, em que o senador do Tocantins Leomar Quintanilha, rico fazendeiro, antigo chefe regional da Arena, o partido do regime militar, antigo companheiro de Paulo Maluf no PDS, ultimamente no PMDB, anunciou seu ingresso na gloriosa agremiação da foice e do martelo. Pelo amor de Deus, senador! Então era tudo um disfarce – o gosto pela propriedade, as 800 cabeças de gado na fazenda de 1.600 hectares, as alianças com a ditadura e a oligarquia? Tudo para, como bom capa preta, melhor lhe encobrir as ações destinadas a induzir à revolução e à ditadura do proletariado?

Em outros tempos, os tempos heróicos de Manuel Venâncio Campos da Paz, a interpretação seria essa mesma. Bom serviço prestava à causa o militante enrustido, dedicado a solapar o inimigo por dentro, "se infiltrando no adversário", para voltar ao poema de João Cabral sobre Ademir da Guia, "mandando nele, apodrecendo-o". Cumprida a missão, o agente encoberto podia permitir-se sair do armário, triunfante. Nestes tempos, é outro o caso. Quem está saindo do armário não é o senador Quintanilha, mas o PCdoB. O velho partido da guerrilha no Araguaia rasga a fantasia e cai na gandaia. "Tudo o que é sólido desmancha no ar", constatava o mesmo Manifesto Comunista de Marx e Engels. Para eles, o Brasil era uma realidade (ou uma irrealidade) muito distante. Se não, eles poderiam ter acrescentado que tudo o que começa pretendendo-se sério acaba por derreter-se ao sol dos trópicos.