domingo, outubro 23, 2005

Cidadania na veia HELENA CHAGAS

o globo

Sim ou não, nada será como antes. A pergunta pode ter sido mal formulada, a proibição da venda de armas não é a questão central no grande drama da violência urbana e sempre podemos nos lembrar de temas mais importantes a merecer consulta popular. Tudo isso é verdade. Mas o fato é que em casa, no trabalho, nos bares, na condução, não falamos de outra coisa há um mês.

E isso terá algum significado. No mínimo, o referendo nos torna um pouco mais conscientes. Paradoxalmente, conscientes de nossa impotência para resolver de uma tacada o problema da segurança — já que não há garantias matemáticas de que a proibição, se referendada, iria reduzir os índices de criminalidade. Ao mesmo tempo, porém, teremos ficado mais conscientes de que o pouco que podemos fazer pode ser alguma coisa. O simples ato de sair para votar num domingo que não é de eleição já faz pensar.

É verdade que a campanha deixou a desejar. Fomos bombardeados com tantos números, pesquisas, estatísticas que no dia seguinte eram desmentidas e contestadas que parece ter- se criado uma espécie de desconfiança ou ceticismo em relação a dados — aliás, muito bem manipulados pelas propagandas das duas frentes.

Ora era estatística mostrando que a chance de se sair bem ao reagir a um assalto é de uma em 288.345.774.324.500 (o que quer dizer que nos outros 288.345.774.324.499 casos a vítima que reagiu morreu?). Ora são números aterradores da Nova Zelândia ou da Austrália, segundo os quais ao fim de 12 meses em que foram entregues ao governo 650 mil armas, ao custo de US$ 500 milhões, o índice de homicídios aumentou 3,2%, o de agressões 8,6% e o de roubos 44%.

Tem número para tudo que é gosto. Resolvi, até segunda ordem, não acreditar em nenhum. Quem é a favor do "Sim" fica com os seus, quem vota "Não" escolhe outros. Pelas vezes em que o TSE interveio na propaganda na TV, podemos concluir que houve muita empulhação dos dois lados.

Mas o certo é que, da reflexão, da discussão no bar, do debate com os colegas de trabalho, alguma coisa ficou. A principal é que não é preciso ser especialista em armas, ou diplomado em segurança pública, para decidir. Muitas vezes, é questão de bom senso.

Por exemplo: ainda que não existam garantias de que a proibição vá reduzir os índices da violência urbana, parece óbvio que, no momento em que houver menos armas em circulação, menos mortes ocorrerão, sobretudo acidentais e passionais. A criança que não encontra um revólver não corre o risco de matar sem querer o coleguinha. O marido ciumento pode usar uma faca, ou um martelo — mas, convenhamos, fica mais difícil. Só por isso, ainda que o resultado venha a ser mais modesto do que apregoa a campanha do "Sim", já vale a pena. Muda alguma coisa.

Outro argumento interessante que li outro dia em meio a uma acalorada discussão de um grupo via e-mail. O pessoal do "Não" alegava que, se a questão for essa, então deveríamos eliminar do mundo carros, aviões e até facas. Afinal, todos eles, em algum momento, podem matar tanto quanto arma de fogo. Achei ótima a resposta de um colega: nenhum desses objetos, porém, foi inventado com a única e exclusiva finalidade de matar...

O pessoal da terceira frente, a do voto nulo, e o da quarta, a das abstenções, reclama que o poder público está jogando no colo do cidadão um abacaxi que não consegue descascar. Estaria transferindo a decisão sobre uma questão que cabe ao Estado cuidar e garantir, a segurança pública. Se foi essa a intenção, o tiro saiu pela culatra. Pois se há algo que o debate mostrou, uma só percepção a unir "Sins", "Nãos" e indecisos, é a de que é gigantesca a incompetência dos governos (federal, estadual, municipal) nessa área. Todo mundo já via isso, mas a mobilização pode acabar nos ajudando a cobrar de forma mais efetiva.

É por aí que, por maior que seja a má vontade com os dois lados, a preguiça de pegar fila para votar, a irritação quando a programação da TV era interrompida pela propaganda, vale a pena sair de casa hoje.

Leitores costumam cobrar isenção e distanciamento de jornalistas. Às vezes, porém, cabe pedir licença para uma exceção. Se não deu para perceber, voto no "Sim". Por tudo isso aí acima e, principalmente, pelo argumento da minha filha Ana: dizer "Sim" é um jeito de mostrar às novas gerações de brasileiros que somos um país contrário às armas e à violência — que, apesar de tudo, somos da paz. Ainda que fique para a próxima vez...