O GLOBO
A falta de manifestações de massa expressivas numericamente neste processo de crise política que já entra no quarto mês é uma das muitas peculiaridades do nosso momento político. O próprio presidente Lula reconheceu recentemente que se fosse outro presidente já estaria com a popularidade abaixo de zero, uma admissão de que os crimes de que seu governo é acusado são realmente graves. Ao mesmo tempo que as pesquisas de opinião apontam para uma degeneração de sua popularidade — 50% dos eleitores que votaram em Lula já não votariam mais — o povo não está mobilizado para grandes manifestações de protesto, embora aqui e ali surjam sempre passeatas como a de quinta-feira no Rio, que reuniu cerca de mil pessoas no Centro.
O arquiteto Ricardo Várzea, leitor da coluna, pergunta se não estaríamos vivendo um momento de transição, "no qual as grandes demonstrações de rua seriam substituídas, pelo menos em parte, pela audiência das transmissões televisivas diretas, pelos blogs políticos, orkut, ICQ, etc., que tomam cada vez mais a atenção dos cidadãos, principalmente dos jovens, os grandes freqüentadores de passeatas em todos os tempos".
Ele lembra que os depoimentos importantes das CPIs reúnem pessoas em frente das televisões nas vitrines das lojas, nos bares e restaurantes ou nos próprios locais de trabalho, como se fossem jogos do Brasil na Copa do Mundo. Embora esse processo já tenha passado de seu auge, e alguns observadores acreditem até mesmo que a seqüência de depoimentos já está cansando a opinião pública, o grau de interesse continua alto, o que pode ser constatado pela audiência dos canais a cabo como a Globonews e a TV Senado.
"Pode-se dizer que estamos assistindo a um processo que, acompanhado apenas por manifestações de rua menores aqui e ali, se acentua irremissível e diariamente. Nada temos, até agora, que nos lembre os comícios das Diretas ou as marchas dos caras-pintadas. No entanto, os próprios fatos insinuam caminhos de reparação nacional cada vez mais evidentes", comenta Ricardo Várzea.
Também o sociólogo Hamilton Garcia, professor da Universidade do Norte Fluminense, diz que "são as instituições democráticas, entre elas a mídia, que oferecem as condições para que o atual movimento popular anti-impunidade possa, eventualmente, evoluir para o impedimento do presidente.
São elas que oferecem os espaços (CPIs) e as informações (imprensa e TV) para que as convicções se formem e, potencialmente, deságüem em mobilizações sociais". Ele lembra que "não se deve crer que as lideranças políticas, sobretudo as parlamentares e de oposição, mantenham convicções sem levar em conta as da opinião pública". As duas análises mostram que estaríamos vivendo uma transição nesse novo mundo tecnológico, que no Brasil ainda se baseia muito no sistema de comunicação de massa tradicional, mas já sofre influências das novas tecnologias, que representariam a sociedade civil global que está se formando, segundo a definição do sociólogo Manuel Castells, da Universidade Southern Califórnia, nos Estados Unidos.
Segundo ele, "a sociedade global tem agora os meios tecnológicos para existir independentemente das instituições políticas e do sistema de comunicação de massa". Essa nova maneira de encarar o mundo em que vivemos, tentando preencher o que Castells define de "vazio de representação", a fim de legitimar a ação política, é o que faz surgir "mobilizações espontâneas usando sistemas autônomos de comunicação". Internet e comunicação sem fio, como os telefones celulares, fazendo a ligação global, horizontal, de comunicação, provêem um espaço público como instrumento de organização e meio de debate, diálogo e decisões coletivas", ressalta Castells.
A campanha, através de mensagens de telefone celular, que acabou ajudando a derrotar o primeiro-ministro Aznar na Espanha depois do atentado terrorista em 2004, já é um exemplo clássico da potencialidade de mobilização dos novos meios de comunicação. Na internet brasileira, já começa a circular uma campanha pelo voto nulo nas próximas eleições que, para pavor dos políticos, pode ganhar terreno diante da desilusão com a atuação deles. A voz rouca das ruas de que falava Ulysses Guimarães passaria a ser a voz da decepção.
Embora seja muito difícil de acontecer, existe a previsão no Código Eleitoral, em seu artigo 224, de que se mais da metade dos votos forem nulos, será convocada nova eleição de 20 a 40 dias depois. Há, porém, várias dúvidas que deverão ser esclarecidas por uma consulta formal do deputado Miro Teixeira, do PT do Rio, que em questões eleitorais costuma descobrir novidades que têm influência importante nos pleitos. Foi ele o autor da consulta que resultou na verticalização dos votos na eleição de 2002.
Ele lembra, por exemplo, que como a Constituição diz que será eleito presidente o candidato que for mais votado, excluídos os votos nulos e em branco, a norma do código eleitoral não pode prevalecer, só havendo possibilidade de anulação das eleições para deputado, vereador e senador. As regras para eleição de governador e prefeito seguem as de presidente.
Há também a dúvida sobre que candidatos poderiam concorrer num segundo pleito. O presidente do TSE, ministro Carlos Veloso, acha que os candidatos que não tenham sido causadores diretos da anulação do pleito poderiam concorrer novamente. Mas Miro Teixeira diz que se a campanha do voto nulo fosse vitoriosa, seria sinal de que o eleitorado estaria rejeitando todos os candidatos, que teriam sido os causadores da anulação do pleito.