O GLOBO
Não satisfeito com o festival de fisiologismo que comandou nos últimos dias para colocar o candidato oficial Aldo Rebelo na presidência da Câmara, o Palácio do Planalto patrocinou ontem pelo menos duas iniciativas que revelam que tipo de política seus atuais ocupantes estão dispostos a adotar para lá permanecerem por mais quatro anos.
Na primeira reunião de líderes sob nova administração, o líder do governo defendeu prioridade para a votação da proposta de emenda constitucional que prorroga para 31 de dezembro o prazo para mudanças na legislação eleitoral, que termina hoje. Essa manobra confirma as informações que circulavam na Câmara de que o governo havia se comprometido com os partidos da sua base envolvidos no mensalão — PP, PTB e PL — a rever as cláusulas de barreira, que estão em vigor para as próximas eleições.
A aprovação da emenda constitucional fora do prazo é questionável, e já existe outro argumento para permitir a mudança das cláusulas de barreira: seus patrocinadores alegam que elas não fazem parte do processo eleitoral e, portanto, podem ser alteradas a menos de um ano das eleições. Esse argumento, tirado da cartola ontem, é ridículo do ponto de vista legal, e só uma grande armação política, com o apoio do Supremo, poderia fazê-lo vingar.
Mas esse relaxamento das regras, que interessa também ao PCdoB, partido do novo presidente da Câmara, conta com o apoio de dois partidos da oposição: PPS e PV. E tem, desde ontem, um interessado de muita influência no governo: o novo partido criado pela Igreja Universal do Reino de Deus, do famigerado Bispo Macedo. O Partido Municipalista Renovador (PMR) é o novo abrigo do vice-presidente José Alencar, que o preferiu ao PMDB, ao que tudo indica convencido pelo próprio presidente Lula.
Nessa geléia-geral em que se transformou o governo Lula, não apenas os partidos do mensalão voltaram a fazer parte da base aliada, como um novo partido de aluguel foi adicionado a ela. O vice Alencar rompeu com o PL depois que o partido decidiu romper com o governo. Mas esse rompimento durou apenas o prazo suficiente para que as vigorosas convicções oposicionistas do não menos famigerado Valdemar da Costa Neto fossem amaciadas por argumentos muito mais vigorosos.
Como a aprovação de uma emenda parlamentar de Valdemar, que nem parlamentar mais é, pois fugiu da cassação pela porta dos fundos da renúncia. Mas as portas do Palácio do Planalto foram abertas para ele, na véspera da eleição para a presidência da Câmara.
O vice Alencar, com a sabedoria política mineira que imagina ter, fez o que pensa ter sido uma jogada de mestre, convencido pelo presidente a aderir a mais essa aventura partidária do Bispo Macedo, que já havia sido seu parceiro no PL. O PMR é um partido criado pelos evangélicos da Universal para substituir a marca PL, manchada pelo escândalo do mensalão. Em poucos dias conseguiram recolher nas igrejas espalhadas pelo país milhares de assinaturas para constituir um partido político, meta que o PSOL levou quase um ano para atingir pelos métodos tradicionais.
O PMR é o próprio Gospel do Crioulo Doido, como bem definiu o prefeito do Rio, Cesar Maia, em seu blog: além do vice mineiro e dos políticos evangélicos da seita de Rodrigues, como o senador Crivella, terá a adesão do "aventureiro do bem" Mangabeira Unger, do ex-ministro Raphael de Almeida Magalhães, e não será surpresa se o ex-presidente do BNDES Carlos Lessa desembarcar nessa aventura, saído do PMDB, que pelo visto preferiu as idéias do ex-ministro Delfim Netto às suas.
Para enganar os incautos, pois é disso que entendem seus fundadores evangélicos, o PMR anuncia que terá um programa completamente oposto à política econômica adotada pelo governo Lula. Mais próximo, portanto, das teses defendidas pelo vice-presidente e pela esquerda do PT. Essa decisão de se aproximar dos evangélicos só acentuará a perda de apoio nos grandes centros urbanos e na classe média.
A popularidade de Lula hoje mais do que nunca se ancora no lumpensinato urbano, massa de manobra do populismo evangélico, e nos grotões do interior, onde uma horda de desvalidos é cuidadosamente manipulada por seus programas assistencialistas.
Com todos esses ingredientes misturados aleatoriamente, e mais o promíscuo relacionamento do governo com as centrais sindicais e os movimentos sociais como o MST, temos um governo inorgânico e sem rumo, que a esta altura só procura sobreviver à avalanche de denúncias de corrupção.
A opção pelo empresário José Alencar na eleição de 2002 tinha uma intenção política específica: convencer o eleitorado não-petista de que a candidatura Lula não representava perigo, e era capaz de unir o capital e o trabalho na busca do desenvolvimento. O PL dos líderes evangélicos era apenas uma casualidade, por ser o partido em que Alencar militava. Mesmo assim, como se viu depois, muitos milhões de reais tiveram que rolar pelo caixa dois para que a aliança prosperasse.
Agora, não. A escolha do partido do Bispo Edir Macedo é uma jogada política com outro alcance. É a tentativa explícita de ampliar os tentáculos do governo a uma área popular que atrai muitos votos de cabresto, uma jogada política digna de um Garotinho, que trabalha no mesmo segmento.
Se Alencar continuará na vice ou se a perderá para o senador Renan Calheiros, que se empenha para que o PMDB assuma esse papel, só o tempo dirá. O fato é que se ele fosse para o PMDB, seria impossível não tê-lo como vice em caso de um acordo político com o partido. Lula pode ter armado essa "fria" para José Alencar pensando em descartá-lo a médio prazo, colocando Renan Calheiros em seu lugar. Não terá sido a primeira traição política que a dupla Lula-Renan tramou nos últimos dias.