sexta-feira, setembro 30, 2005
EDITORIAL DE O GLOBO Cidade partida
A descoberta de um prédio de 11 andares construído na Rocinha sem que a prefeitura reprimisse tamanha aberração levou o prefeito Cesar Maia a exercitar a ironia. "É muito melhor ter prédios grandes na Rocinha do que prédios grandes na praia, pois eles produzem sombra." A tirada poderia ser apenas mais um comentário folclórico de Cesar Maia se não passasse para o carioca a assustadora idéia de que a lei não vale para todos, quando se trata de seguir as posturas municipais.
Assim, o conceito de cidade partida passa a ter outra interpretação: de um lado, as favelas e edificações irregulares, tratadas com salvaguardas especiais; delas nada se cobra e é exigido — conta de luz, IPTU, gabaritos, licenças, vistorias etc. — de outro, a cidade legal, onde os serviços públicos são devidamente pagos, em que a burocracia inferniza os construtores, e assim por diante.
Não surpreende que a cidade informal cresça e avance sobre a formal. E como resultado da diferença de pesos e medidas no tratamento dado pela administração pública a uma e outra cidade degrada-se a vida no Rio, afugentam-se investimentos e com isso é estabelecido um círculo vicioso de deterioração da vida do carioca — de favelados e de não favelados — a ser quebrado com urgência.
A favelização no Rio tem causas comuns ao mesmo processo de desordem urbana verificado em outras regiões do país: falta de uma política habitacional ampla para as classes de renda mais baixa, desequilíbrios estruturais que produziram uma intensa corrente de migração interna para o Sul e Sudeste, por exemplo.
O problema no Rio, porém, foi agravado pela questão específica do populismo de alguns governantes. A favela, em vez de ser vista como é, uma anomalia, foi convertida em curral de eleitores.
O importante, agora, é recolocar a questão na agenda da sociedade — e dessa vez sem interditar o termo "remoção", descontaminando-o de um sentido pejorativo que ele não deve ter. Um programa amplo de desfavelização, com os devidos investimentos em transporte de massa, não pode deixar de prever a transferência de favelados para moradias dignas e de fácil e barato acesso. Há inúmeras razões de segurança pública, de saneamento e de qualidade de vida para toda a população que justificam essa iniciativa.