domingo, setembro 25, 2005

Gaudêncio Torquato O horizonte além da crise

o estado de s paulo

E o dia de amanhã? A pergunta começa a se fazer ouvir, em meio aos ensaios de leitura sobre refundação do PT, reaglutinação das forças de esquerda, ideologização dos movimentos sociais e fortalecimento do oposicionismo. O horizonte, mesmo obnubilado pela discurseira nos palcos das investigações em curso no Congresso, permite divisar seus primeiros contornos. Por ter como agente principal o PT, cuja trajetória foi marcada pelo combate à corrupção e pela ética na política, a crise terá mais impacto sobre as esquerdas do que sobre outros nichos do arco ideológico. A hipótese conduz a outras conclusões: o partido de Lula será menor e mais rachado; as esquerdas acenderão as diferenças; os movimentos sociais, em sua grande maioria, se abrigarão sob o manto da micropolítica, afastando-se de pregações ideológicas; os grandes partidos, empurrados pela contrariedade das classes médias, aumentarão o volume de oposição ao governo; e a racionalidade será mais alta no processo eleitoral.

Vejamos. A eleição de Lula fechou o ciclo de 25 anos de lutas das esquerdas brasileiras. Durante esse tempo, o PT, arvorando-se na condição de único partido virtuoso, esforçou-se para dividir o País em duas alas, a dos limpos e a dos sujos. Até que viu o mundo desmoronar sobre sua banda, a dos limpos. Foi flagrado no maior esquema de corrupção partidária da História republicana. O arremate da crise será o velório de um grupo formado na luta contra a ditadura militar de 64. Depois de lapidar seus perfis com o cinzel das grandes virtudes, lideranças petistas acabaram se mostrando mais impuras que os piores adversários. Negociatas espúrias, esperanças frustradas, bases desmotivadas e tendências em conflito: esse é o pano de fundo sobre o qual se prega a refundação do PT. Tarefa impossível no curto prazo. Ou, tomando emprestado o grito (da moda) de Dolores Ibarruri, la Pasionaria, contra a escalada fascista, durante a Guerra Civil Espanhola, inspiração da filósofa Marilena Chauí para execrar os que têm "ódio contra o PT": no pasarán. A "vanguarda iluminada" petista não passará pelo teste da moralidade. E o partido não passará limpo pelo teste das urnas.

O Campo Majoritário perde força para as tendências de esquerda. A luta será fratricida. A "guinada em direção ao conservadorismo e ao neoliberalismo" é o discurso comum das alas de oposição. Que pregam coisas como privatização de empresas públicas, propriedade pública dos grandes meios de produção, renegociação da dívida externa, o "fim da ditadura" do superávit primário, "independência total em relação aos empresários e banqueiros". Lula, como se sabe, tem como principal trunfo a política econômica liberal, responsável pela estabilidade e pela confiança internacional no País. Se o PT das bases promete lutar contra o PT do governo, em que canto se refugiará Lula? Terá ele a maioria do partido por ocasião das eleições? Antes que a fogueira fique mais alta, muitos já começam a abandonar o barco. O PT, como se pode deduzir, sairá da crise despedaçado e mais curto.

É fato, ainda, que as esquerdas, desde a eleição de Lula, ficaram mais pulverizadas, perdendo a capacidade de atração e mobilização, especialmente entre os segmentos jovens. O verticalismo nos comandos, o exclusivismo das idéias e o voluntarismo de dirigentes estão entre as causas do enfraquecimento, além de uma concepção capenga da idéia de conquista de poder. Como acentua a cientista social chilena Marta Harnecker, no livro Tornar Possível o Impossível, a esquerda latino-americana reduz o conceito de poder ao poder do Estado, concebendo a revolução essencialmente como assalto a este poder, tarefa que concentra os seus esforços. Ora, este foi o equívoco sesquipedal do PT. Além da má gestão, as esquerdas sofrem os impactos da modernidade. A cultura política contemporânea impregna-se dos novos valores ditados pela universalização econômica. Ademais, as doutrinas se imbricam, tornando anacrônicas as propostas de acentuado cunho ideológico. Os extremos se estreitam. Isso vale para o Brasil. No campo das nossas esquerdas, perfis pessoais - como o da senadora Heloisa Helena (PSOL-AL) - são mais respeitados que perfis partidários.

Por essa razão, o oposicionismo no País será mais forte pela via dos grandes partidos, que voltarão suas antenas para a captação dos sentimentos e expectativas da sociedade, a partir das classes médias. A crise criou um antídoto ético. Uma "senhora indignação" se insere no vocabulário de brasileiros de todas as classes. Mas a vitamina social virá, sobretudo, dos movimentos sociais, estes, sim, em crescente processo de expansão e consolidação. Há, no País, perto de 300 mil organizações não-governamentais, de acordo com o IBGE. Muitas delas se agrupam em movimentos para defender demandas de grupamentos e setores. Sua organização é uma resposta à democracia representativa, que não está correspondendo às expectativas sociais. Não se espere deles, portanto, engajamento de cunho ideológico, pois sua malha de interesses abriga a pauta cotidiana das comunidades: menos impostos, mais segurança, escolas melhores, transporte mais barato, salários condignos. Ou seja, os movimentos sociais serão movidos pela micropolítica e pelo pragmatismo. Entre uma ou outra exceção, inclui-se o MST, que tem capilaridade por se fazer presente em todos os Estados da Federação.

O saldo final da crise aponta para maior concentração de forças nos setores organizados, na esteira da expansão da racionalidade. O resultado aparecerá no voto, que sairá do coração para subir à cabeça. A onda de contrariedade poderá até redundar numa avalanche de votos nulos e em branco. Não se descarta, porém, a hipótese de razoável quantidade de candidatos lançados por grupos organizados em contraponto a perfis tradicionais. O horizonte, vale crer, terá tons de azul.