domingo, setembro 25, 2005

EDITORIAL DE O ESTADO DE S PAULO Contraste auspicioso


J á se disse que a grande novidade da atual crise política brasileira é o fato de ela não interferir em nossa economia. Só que essa constatação se alarga e adquire um grau de exemplaridade exponencial: no momento de maior exacerbação da crise política - quando à sociedade se apresenta o cenário mais confuso e caótico, em termos de governo, partidos políticos, representantes legislativos e figuras públicas das cúpulas dos Poderes de Estado -, os índices de aferição econômica ou de avaliação de tendências de mercado se mostram os mais positivos dos que se tinha conhecimento em décadas.

De um lado temos a renúncia do presidente da Câmara dos Deputados - o segundo cargo na linha sucessória presidencial -, o funcionamento (pela primeira vez online) de três Comissões Parlamentares de Inquérito, e mais, de um Conselho de Ética, prestes a encaminhar a cassação de vários mandatos parlamentares, afora as investigações da Polícia Federal e do Ministério Público; temos o maior partido do País se esfrangalhando, o governo e seus aliados submergindo em um mar de lama, a comprovação cada vez maior de um volume de corrupção sistêmica jamais imaginado nesta República.

Mas de outro lado temos a inflação melhor controlada, elevação do nível de emprego e dos salários reais, contas públicas sob controle, superávit nas contas externas, superávit comercial cada vez maior, as Bolsas de Valores em alta de 20% desde maio, o "risco país" diminuindo substancialmente, o aumento nas projeções de crescimento - e até o inédito (e muito bem-sucedido) lançamento, na última segunda-feira, de títulos da dívida externa, expressos em reais. Não parece um paradoxo a lama política dar a impressão de que está até "nutrindo" a atividade econômica?

"Estamos há 63 anos no Brasil, a conjuntura política não nos assusta" - disse Brian Smith, presidente da Coca-Cola Co., justificando investimento da ordem de R$ 110 milhões em nosso país. Mesmo com nossos gritantes problemas infra-estruturais, mesmo com nossas persistentes desigualdades sociais, mesmo com a decepção profunda em relação ao que talvez seja o pior governo da História republicana (que acerta apenas na Economia, como o relógio parado de que falam os chineses, que acerta uma vez por dia), a atividade econômico-produtiva do Brasil vai bem.

É verdade que nos beneficiamos de uma conjuntura internacional muito favorável - caracterizada por abundante liquidez nos mercados financeiros globais. Além disso, como reconhecem os analistas externos, dispomos de uma forte economia agrícola, geradora de "um colchão de superávits comerciais", e hoje colhemos os frutos de reformas institucionais implantadas nos últimos anos, de tal forma que a atividade econômico-produtiva parece conduzida por uma espécie de "piloto automático". E aí está um ponto crucial de nosso desenvolvimento, como sociedade sob pleno regime democrático.

Em democracias desenvolvidas, como a norte-americana e algumas européias, as sociedades dependem cada vez menos dos governos e do Estado. Foi-se o tempo em que o rei fraco tornava fraca a forte gente - como cantava o grande vate lusitano. Nas democracias contemporâneas, em que as sociedades exercem forte atuação junto aos Poderes de Estado - seja por meio dos lobbies legalizados, ou das organizações não-governamentais, seja pela participação direta ou pela influência dos veículos de comunicação -, certo é que o destino social não é mais determinado, como em outras épocas históricas, pela qualidade dos "governos fortes". E o Brasil de hoje dá demonstrações, como nunca, de trilhar este caminho.

É claro que precisamos escolher bons governos, que ajudem - ou, pelo menos, atrapalhem pouco - a evolução política nacional, o desenvolvimento de nossa educação, de nossa capacidade de produção, de nossas conquistas científico-tecnológicas, assim como preencham tantas outras necessidades nossas, infra-estruturais; que ajudem - ou atrapalhem pouco - nosso aperfeiçoamento normativo. E decerto precisamos de boas políticas públicas, planejadas e executadas por bons agentes. Mas é à própria sociedade - independentemente de quaisquer governos - que cabe realizar, de fato, aquilo que está desenhado como nosso melhor destino.