quinta-feira, setembro 01, 2005

DORA KRAMER Ação entre amigos de fino trato

O ESTADO DE S PAULO

Acordão não há, mas existe clara intenção de obstruir o caminho das investigações Um acordo geral, oficial e institucionalizado para pôr um fim às investigações e dar por extinta a crise de fato não existe. É de difícil execução e teria chance zero de ser aceito por qualquer um que não os direta e indiretamente interessados em conluio dessa natureza.

Convém, todavia, que não se menospreze a capacidade do governo de imprimir confusão ao ambiente a fim de criar uma impressão de desorganização generalizada que, aos olhos da opinião pública, pareça produto da ausência de fundamento nas denúncias investigadas e fruto de procedimentos inadequados por parte dos investigadores.

É um movimento bem mais sutil do que aquele conhecido pela denominação genérica - uma verdadeira catedral em homenagem ao lugar comum - de "pizza"; este é explícito e, como se viu pelas reações à posição manifestada pelo presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, impraticável nessa altura dos acontecimentos.

Mas que não se subestime o dom de iludir do inquilino-mor do Palácio do Planalto, cuja habilidade nessa seara se traduz na própria conquista da Presidência da República.

No ano passado, quando se quis mesmo encerrar a crise do escândalo Waldomiro Diniz - que não cedia a golpes de retórica e recrudescia a cada tentativa de golpe regimental dentro do Congresso -, exibiu-se uma fita na televisão em que um procurador da República interrogava um investigado de madrugada na sede da procuradoria e deu-se às imagens o nome de conspiração para derrubar o presidente da República.

Com ajuda da emissora agraciada com o vídeo entregue em domicílio por advogado amigo do então ministro José Dirceu, e o beneplácito do então procurador-geral, a versão "colou" de tal forma que pareceu à opinião pública que a crise teve origem na investigação e não no flagrante de suborno de um assessor (Waldomiro Diniz) de Dirceu sobre o bicheiro interrogado pelo procurador.

Prevaleceu a ilusão óptico-auditiva do complô e a crise realmente arrefeceu. Para voltar com força multiplicada tempos depois, mas à época, e agora também, foi festejada a visão de curto prazo e desprezada qualquer percepção estratégica.

A ação engendrada neste momento é mais intrincada e composta de variantes diversas, embora concatenadas.

Do Palácio do Planalto sai a versão sobre a solução e conclusão da crise à vista; da presidência da Câmara sai a tese do abrandamento das punições; da presidência do Senado sai uma suposta resposta dura à Câmara.

Na realidade, a tal "resposta", a decisão de organizar em relatório único os trabalhos das CPIs dos Correios e da Compra de Votos, é puro efeito especial.

Na verdade, ajuda a corroborar a idéia de que as comissões estão perdidas, mergulhadas em narcisismo à deriva, precisando de quem as salve da própria incompetência.

Também confere ligeireza e superficialidade a ambos os trabalhos, pois, de forma sub-reptícia, interdita o aprofundamento de cada uma das instâncias de investigação.

Ao lado disso, desqualificam-se a utilidade dos depoimentos (o momento em que as coisas são mais claramente exibidas à opinião pública), convocados adiam o comparecimento e outros simplesmente não têm seus depoimentos marcados, não obstante aprovação anterior pelo conjunto das comissões.

Se o leitor não havia percebido, é para dar eficácia a tais postergações que serve ao governo ter relatores e presidentes amigos. Na cena principal, trabalham todos com muita disposição e afinco, mas nos bastidores as jogadas são mais refinadas e ladinas.

Há formas mais grotescas, como a obstrução pura e simples das apurações. Exemplo é a recusa das testemunhas de defesa do deputado Dirceu em comparecerem ao Conselho de Ética e, assim, contribuírem para atrasar o processo ao máximo, apostando na morte da crise por inanição.

E o que tem o governo com isso? Os três "recusantes" são dois ex-ministros, Aldo Rebelo e Eduardo Campos, e o líder do governo na Câmara, Arlindo Chinaglia.

Mas para dar tudo certo, mesmo nesse conchavo de delgadezas, é preciso desmoralizar a imprensa, tarefa à qual o presidente Lula vem se dedicando desde a semana passada.

Começou na sexta-feira quando, em solenidade ao povo - que imagina tolo - de Quixadá (CE), chamou a atenção para as "aves de mau agouro", cujos ninhos repousam nas redações de jornais e emissoras de rádio e televisão.

Anteontem prosseguiu sendo mais explícito: pediu "cuidado" com a imprensa.

Sabe-se lá por obra de quem, nos últimos dias começaram a circular na internet "manifestos" de procedências diversas protestando violenta e intolerantemente contra o trabalho da imprensa em geral e da revista Veja em particular.

A despeito da visão míope de um protesto contra o direito de ser informado, aos e-mails não se pode impor reparo, dado o direito de as pessoas se manifestarem como quiserem.

Já na boca do presidente da República, esse tipo de "alerta" soa a deformação institucional.

Daí para a retomada da velha proposta de restrição à liberdade de expressão em nome do "interesse nacional" é um pulo.