sexta-feira, setembro 30, 2005
Dirceu entre a inocência e a onipotência MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
"Peguei em armas pela liberdade de imprensa", disse o deputado José Dirceu num dos raros momentos de vivacidade do seu depoimento ao Conselho de Ética da Câmara, na terça-feira passada.
A frase ilustra as dificuldades do ex-ministro em se mostrar convincente quando toma a palavra. Não é que seja mentira. Só é um tanto dura de engolir. Se ele dissesse que pegou em armas pelo socialismo, pela justiça social, pelo fim da ditadura, não haveria reparos a fazer. Mas pegar em armas pela liberdade de imprensa?
Claro, qualquer pessoa que, nos anos 70 ou 80, lutasse pela redemocratização do país estava automaticamente defendendo o fim da censura a jornais e revistas. Só que isso não significa que a liberdade de imprensa levasse alguém a entrar na luta armada. Muito menos no caso de José Dirceu, a quem não repugna manter relações com Fidel Castro.
De qualquer modo, José Dirceu tem motivos para reclamar da imprensa. Fiquei chocado, por exemplo, ao topar, na coluna de Millôr Fernandes na revista "Veja", com uma foto do ex-ministro num riso escancarado, que revelava suas mais recônditas obturações. A imagem servia para o humorista chamar José Dirceu de "Boca de Ouro" e citar, sem muito propósito, falas do conhecido facínora de Nelson Rodrigues.
Diante do Conselho de Ética, José Dirceu insistia: tem sido vítima de um linchamento moral, e não há prova nenhuma contra ele. "Estou cada vez mais convencido de minha inocência", declarou, numa formulação infeliz, com jeito de ato falho.
Em outra ocasião, ele também já tinha tropeçado em palavras parecidas. Afirmara-se "inocêncio", despertando alguns risos na platéia, ao lembrar involuntariamente um prócer político com quem não tem muitos pontos em comum.
Na mesma linha de deslizes verbais, chamou-me a atenção uma frase de José Dirceu na sua entrevista para Mônica Bergamo, na Folha de domingo passado.
Ele reafirmava que o dinheiro do valerioduto veio de empréstimos de campanha feitos pelo PT e por Marcos Valério no Banco Rural. "O problema", acrescentou, "é que não se quer aceitar essa tese". Uma "tese"? Do seu ponto de vista, não deveria ser uma "tese", uma "versão", uma "teoria", mas sim um fato, uma verdade meridiana e simples...
Atos falhos e impropriedades vocabulares não são, todavia, prova de culpa. A questão é que, embora sem provas, ninguém acredita que José Dirceu seja inocente, e que toda a responsabilidade pelo valerioduto estivesse apenas nas mãos de Delúbio Soares.
A imagem de "manda-chuva" é indissociável de José Dirceu, e ainda hoje a sua argumentação fica talvez debilitada por um excesso de vaidade: se o acusam, se o perseguem, é porque ele, José Dirceu, representa a esquerda, representa o governo Lula etc. Logo após sua demissão, ficou célebre a frase com que José Dirceu se referia "ao meu governo".
Resumindo, é como se José Dirceu dissesse: embora todo-poderoso, não tive poder nenhum sobre o que acontecia. Em tese, é possível que tenha sido assim. Mas, numa psicologia algo perversa, talvez ele até se sinta mal ao afirmar que algo escapara ao seu controle.
Dizer-se inocente equivale a admitir que seu poder não era tão grande assim.
E isso dá um tom fosco, desanimado, às suas declarações. Quanto mais Roberto Jefferson se dizia culpado, mais acreditavam nele. O contrário ocorre com José Dirceu. Ele poderia dar argumentos no sentido de que não era necessário pagar "mensalão", de que as votações dos partidos aliados seguiam outra lógica, de que há contradições e inconsistências nas acusações dos adversários...
Mas José Dirceu se fecha, dizendo o mínimo possível, numa atitude de pura resistência.
Ainda aqui, seu passado de esquerda o condena: em tempos de delação premiada, ele segue o princípio de não entregar seus companheiros.
O resultado é menos heróico do que burocrático. "Tudo foi aprovado pelo partido"; "essa pergunta não sou eu quem tem de responder"; "eu não era deputado quando tais casos ocorreram"... José Dirceu diz que assume responsabilidades políticas, mas não sabemos exatamente quais, nem a respeito do quê.
Ganha assim um significado paradoxal a frase mais forte de sua entrevista à Folha: "eu fui desumanizado, eu não existo mais". Talvez esse processo não tenha começado agora.
A sensação de "inexistência" remete aos tempos de sua clandestinidade. Mas é a própria posição de "apparatchik" do partido, de executivo político capaz de agir sem nenhuma sentimentalidade, pronto a fazer "o que é necessário" no jogo do poder, que o desumaniza aos olhos da opinião pública, e transforma em dura indiferença pessoal o que ele chama (ainda?) de idealismo político.