folha de s paulo
SÃO PAULO - Apolônio de Carvalho rendeu-se à morte apenas anteontem, mas o espírito de que ele era talvez o maior e melhor símbolo fora assassinado bem antes, em algum momento do século passado.
Refiro-me à busca incessante da utopia. Pode-se concordar ou odiar a utopia específica que Apolônio buscava, mas não se pode negar a coerência absoluta dele nessa busca. Perdeu no Brasil (de Vargas) e perseverou. Perdeu na Espanha de Franco e perseverou. Ganhou na França da resistência ao nazismo e perseverou. Perdeu no Brasil (do golpe de 1964) e perseverou. Sempre.
Ao contrário de certos personagens que só o fazem nos salões, gritou "no pasarán" sob fogo e sob tortura, ganhando ou perdendo.
Não obstante, era doce o suficiente para parecer a encarnação física da frase do Che Guevara, outro perseguidor da utopia: "Hay que endurecer sin perder la ternura jamás".
O triste na história de Apolônio nem são as derrotas no Brasil ou na Espanha. É o fato de que as utopias, não apenas a dele, parecem ter sido, elas sim, vencidas ou perdido o prazo de validade, no Brasil e na Espanha, na França e na China, onde quer que se olhe.
Não, anticomunistas viscerais, não estou me referindo à utopia específica de Apolônio, o comunismo, mas a um sonho bem mais generoso e libertário, o de sociedades mais justas, mais humanas. Nossa, de repente dizer essas coisas soa a mim mesmo como piegas, brega.
Não que não haja poetas e lutadores sonhando sonhos. É que eles não são ouvidos ou não se fazem ouvir e, portanto, os sonhos continuarão apenas sonhos.
Não basta. Na poesia, é até bonito dizer, como Calderón de la Barca, que "la vida es sueño, y los sueños sueños son".
A vida real, para muitíssima gente, é mais pesadelo que sonho.
Pois é, bravo Apolônio, "pasaron", sim. À bala ou mais sutilmente, mas "pasaron".