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Os sinais preocupantes de que os trabalhos das CPIs possam estar sendo deliberadamente boicotados, e de que a disputa entre as comissões, mais do que refletir uma briga de egos entre senadores e deputados, possa ser o reflexo de uma manobra dos governistas para retardar a apuração dos escândalos sem que a operação abafa seja claramente identificada pela opinião pública, está colocando em estado de alerta organizações como a Transparência Brasil, associada à Transparência Internacional, uma organização não governamental exclusivamente dedicada a combater a corrupção no mundo.
São inúmeras as indicações de que está em curso tentativa de acordo para preservar uma maioria de envolvidos nos escândalos. Em Brasília, há indícios de que as cúpulas partidárias tentam achar caminhos para amenizar punições. O deputado Roberto Jefferson, que será o primeiro a ser cassado, poderá ser o pretexto para um grande acordo. Se a acusação contra ele for de que não provou a prática do mensalão, estará dado o caminho para que a alegação de uso de caixa dois nas eleições prevaleça, em vez do desvio do dinheiro público, que ainda não foi desvendado.
De fato, se pegarmos exemplos de outras CPIs, veremos que a manobra governista de dividir a apuração dos escândalos em três comissões está dando resultado, se não no acobertamento dos envolvidos, pelo menos na demora das apurações. Ao delimitar a apuração da primeira CPI instalada, a dos Correios, a maioria governista forçou a oposição a lutar pela instalação de outras comissões, o que acabou dispersando as investigações.
Há diversos exemplos de acordos, explícitos ou tácitos, entre os partidos políticos, cada qual defendendo seu interesse. A tese do" dinheiro não contabilizado" para fins eleitorais, difundida pelo ex-tesoureiro petista Delúbio Soares, interessa tanto ao PFL, que tem um de seus principais quadros envolvidos — o deputado Roberto Brant — quanto ao PSDB, cujo presidente nacional, senador Eduardo Azeredo, também está sendo acusado de ter se valido dos recursos do lobista Marcos Valério de Souza na eleição de Minas Gerais em 1998.
Acordos entre PT e PMDB e partidos aliados, para a não convocação de personagens importantes nos eventos, como o presidente do Sebrae, Paulo Okamoto, e Benedita da Silva, de um lado, e a governadora Rosinha e seu marido Garotinho, de outro, são feitos à luz do dia. O deputado e ex-ministro José Dirceu, peça central para a apuração de todo o esquema de corrupção montado, ainda não foi convocado. A CPI dos Correios, a mais antiga das atualmente em funcionamento, já consumiu mais de setenta dias, e nem chegou à metade das apurações.
A CPI do caso PC Farias, por exemplo, começou em junho de 1992 e foi declarada encerrada três meses e meio depois, tendo o relatório final sido votado em 90 dias. Bastaram 40 reuniões no período, e 22 depoimentos, para estabelecer a culpa do ex-presidente Fernando Collor de Mello. A CPI do Orçamento, que começou em outubro de 1994, terminou três meses depois, com um total de 111 reuniões, por que se reunia praticamente todos os dias, e não se limitava aos três dias da semana em que o Congresso normalmente funciona: terças, quartas e quintas-feiras. Ao fim da CPI, 68 pessoas foram ouvidas, entre elas 33 deputados, ao contrário de agora, quando a CPI dos Correios só ouviu Roberto Jefferson.
Sem falar que a moderna tecnologia que está à disposição dos senadores e deputados deveria facilitar o cruzamento de dados e as investigações. Ao contrário, até hoje não conseguiram abrir nem mesmo os disquetes enviados pelas companhias telefônicas com a quebra de sigilos de alguns dos envolvidos, com a desculpa esfarrapada de que eles não falam entre si.
O presidente da Transparência Brasil, Cláudio Weber Abramo, enviou carta aos presidentes das CPIs expressando preocupação em dois níveis: a origem do dinheiro e a alegação de que foi usado para fins eleitorais. Segundo Abramo, "é implausível" que o dinheiro se origine de "empresas privadas que prefeririam permanecer no anonimato". O mais provável é que os recursos "tivessem correspondido a subornos pagos pela obtenção de vantagens conseguidas em transações ilícitas com o Estado", afirma a carta da Transparência Brasil, que diz que "levantar os alimentadores de propinodutos constituiria um dos principais deveres das comissões".
Quanto à alegação, que classifica de "fácil", que o dinheiro teria sido destinado a pagamento de dívidas eleitorais, "seria minimamente exigível que os indivíduos acusados apresentassem os nomes e CNPJs das empresas fornecedoras que teriam sido beneficiárias dos pagamentos em questão", alega Abramo. Para a Transparência Brasil, "aceitar-se sem maiores questionamentos a desculpa das dívidas eleitorais equivale a desistir de investigar a corrupção".
Equivaleria, também, lembra Abramo, aceitar "que corrupção com finalidade eleitoral seria menos grave do que outras corrupções, com a inevitável conseqüência da extensão, à totalidade dos políticos da pecha de corruptos — o que, decerto, seria inaceitável". A carta termina alertando que "nunca é demais frisar que os ilícitos" de que tratam as Comissões "não constituem simples "erros" ou "falhas", mas crimes".
A "operação abafa" em curso conta também com o silêncio obsequioso da maioria dos intelectuais e com o colaboracionismo partidário de notório cientista político que, vergonha profissional, usa seu pseudo distanciamento acadêmico para abrigar, mesmo diante de todas as evidências, a patética tese da conspiração das elites contra o operário presidente.