folha de s paulo
Dia após dia, a CPI vai matando um a um os sonhos e fantasias do país. E me deixando em prostração profunda. Por isso mesmo, quando o velho senhor me convoca, nem hesito e vou ao seu apartamento no início da noite de uma sexta. Quem há de recusar a convocação de quem, aos 23 anos de idade, alistou-se na FEB, foi voluntário de um batalhão antimina e participou da última batalha da campanha da Itália?
Roberto Mello e Souza, 82 anos, é o decano dos homens de recursos humanos do país. Tem mais de dez livros publicados na área de administração. Representa para o RH o mesmo que seu irmão Antonio Candido para a literatura e a sociologia.
Algumas quintas-feiras atrás, convocou um batalhão de colegas do Fórum Permanente de Estudos Avançados de Relações Humanas do Trabalho, antigos alunos que hoje ocupam vice-presidências de empresas importantes e, juntos, acertaram a estratégia: tinham que sair a campo urgentemente, para mudar a cultura das empresas brasileiras, ainda presas a um modelo empresarial do século 18. Precisamos mudar correndo, antes que o país perca mais uma vez o bonde, diz-me, com olhar ansioso. Percebo que toda essa movimentação é sua contribuição pessoal a esse bicho caprichoso chamado Brasil, em um momento em que teme pela sua sobrevivência, o mesmo movimento de quem juntava todas as forças para salvar companheiros que caíam pelo caminho na campanha da Itália.
Saio de lá reconfortado com a conversa. Em casa, abro o e-mail e está uma carta do leitor e ensaísta José Roberto Guedes de Oliveira, que se prepara para lançar um livro com a correspondência pessoal de Otávio Brandão, alagoano de Viçosa -como Aldo Rebelo-, membro fundador do Partido Comunista, tradutor do "Manifesto Comunista", morto em 1980, no Rio de Janeiro.
Em seu e-mail, Guedes lembra Otávio e sua mulher, a poeta Laura Brandão. Ambos entraram para o PC na sua fundação, em 1922. Em 1931, foram exilados por Vargas, primeiro para a Alemanha, depois para Moscou.
Em Paris, em 1937, o casal comandou a grande reação da opinião pública européia contra um dos maiores crimes cometidos pelo Brasil e pela polícia de Hitler. Primeiro, a deportação de Anita Prestes, a judia-alemã mulher de Luiz Carlos Prestes. Depois de ela morta, a recusa em devolver a filha que tiveram na prisão. Houve uma campanha internacional para que a menina fosse devolvida para a avó, dona Leocádia Prestes. Brandão se aliou ao Socorro Vermelho Internacional, publicou artigos em "L'Humanité", nas revistas "La Correspondance Internationale", de Paris, e "Rudschau", de Basiléia. Delegações de personalidades inglesas e belgas foram a Berlim, solicitar a entrega da criança. E a Gestapo acabou entregando a brasileira Anita Leocádia à sua avó.
Até 1945, Otávio foi redator da Rádio Central de Moscou; Laura, locutora, com seu sotaque carioca. Ambos participaram da resistência heróica no cerco nazista a Moscou. Laura não resistiu aos tempos duros e morreu em 30 de janeiro de 1942, na cidade de Ufá, Sibéria. Foi enterrada no Cemitério dos Heróis do Kremlin.
Otávio não ficou preso ao comunismo. Em carta de 1959 a Cid Sampaio -usineiro e político de relevo da época-, fazia a crítica do stalinismo e a defesa dos interesses nacionais (algo abominável para o internacionalismo dos velhos comunistas): "Cid: existe uma nova realidade. Todos nós estamos superados, presos a experiências ultrapassadas. Fomos deformados pelo stalinismo. Devemos buscar as raízes da nossa própria autenticidade nacional, em proveito da coletividade, e não apenas do proletariado". Tinha um parente ilustre, o futuro presidente Fernando Henrique Cardoso.
Termino a semana pensando em Roberto e sua crença profunda no papel da grande empresa na criação da solidariedade; em Otávio e sua fé profunda no papel da política na criação da nacionalidade. E fico achando que, com as sementes que esses e outros tantos velhos brasileiros plantaram, a esperança ainda há de floresce