O GLOBO
No recém-lançado livro de Bob Woodward "O homem secreto", sobre a verdadeira identidade do informante Deep Throat que o ajudou e a Carl Bernstein, repórteres iniciantes do "Washington Post" a desvendarem o caso Watergate que levou o presidente Nixon à renúncia, Bernstein conta uma passagem exemplar que até hoje estava inédita.
Certo dia, quando os dois checavam as informações que haviam conseguido, chegaram à conclusão de que tinham elementos suficientes para identificar John Mitchell, que fora, entre outros cargos, advogado-geral da União, como uma das cinco pessoas que controlavam um fundo secreto do comitê de reeleição de Nixon.
Esse fundo financiava ações ilegais como a invasão do escritório do Partido Democrata no prédio Watergate, em Washington, que deu início à maior crise da história política recente americana. Quando se viram diante do fato de que estavam prestes a acusar o figurão Mitchell de criminoso, Berstein e Woodward ficaram chocados: "Meu Deus. Este presidente vai ser impichado", exclamou Bernstein. "Jesus, acho que você está certo", replicou um atônito Woodward. Naquele momento, os dois combinaram que jamais diriam "aquela palavra" nas conversas na redação do "Washington Post", para que ninguém pudesse colocar em dúvida a veracidade das informações que conseguissem.
"Qualquer sugestão sobre o futuro do mandato de Nixon poderia minar nosso trabalho, ou o esforço do 'Post' de ser verdadeiro", escreve Berstein. Essa conversa eles tiveram um ano antes que o Congresso dos Estados Unidos iniciasse o processo de impeachment, e 22 meses antes de Nixon renunciar.
A discussão sobre a possibilidade de a atual crise política vir a desaguar num processo de impeachment do presidente Lula, que freqüentava as conversas em voz baixa de políticos no Congresso, tomou corpo esta semana depois da atuação do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Nelson Jobim, junto a políticos de vários partidos. Ele assumiu informalmente uma articulação política para neutralizar qualquer iniciativa que possa levar a um processo de impeachment.
Segundo os relatos, Jobim alertou para o perigo de o país ficar ingovernável nos próximos dez anos caso a política se radicalize com o impedimento do presidente Lula. O ministro Jobim, que é um dos poucos remanescentes na vida pública dos "cardeais" que faziam alta política no Congresso — ele foi relator da Constituinte de 1988 — deve ter tomado a iniciativa ao sentir a falta de rumo dos atuais líderes políticos.
Mas, assumindo uma ação ostensivamente política, se expôs a críticas como as do presidente da OAB, Roberto Busato, que lembrou que o Judiciário "não pode se misturar com a crise pois poderá ser chamado a desempenhar o seu papel constitucional nela", referindo-se ao fato de que, caso o processo de impeachment aconteça, quem preside a sessão do Senado é o presidente do STF. Busato, no entanto, já foi criticado severamente pelo ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, quando, no início da crise política, deu uma entrevista no exterior já falando sobre a possibilidade do impeachment.
Banalizar o impeachment, que o historiador americano Arthur Schlesinger classifica de "instrumento de última instância", é um dano para a democracia brasileira que foi muito cultivado pelo PT, que agora se fere com a maneira radical de fazer política que sempre adotou. Desde o movimento exitoso de destituição do presidente Fernando Collor de Mello, iniciado em 1991, o PT adotou a tática de acirrar os ânimos oposicionistas, e passou os oito anos dos governos de Fernando Henrique pedindo o impeachment do presidente, pelas razões mais diversas.
Arthur Schlesinger diz que um país deve ter um impeachment de 50 em 50 anos, para os governantes ficarem atentos, para o presidente não abusar dos seus poderes, não querer prevalecer sobre os demais poderes. Mas ele ressalta que o custo para o sistema político é gigantesco, lembra o cientista político Amaury de Souza, que escreveu um trabalho intitulado "O impeachment de Collor e a reforma institucional no Brasil", publicado no livro organizado por Keith S. Rosenn e Richard Downes, "Corrupção e reforma política no Brasil: o impacto do impeachment de Collor", editado pela Fundação Getulio Vargas em 2000.
Amaury de Souza diz que "dificilmente vai aparecer alguma coisa que possa ligar Lula diretamente a esse esquema de corrupção". Para ele, "é preciso que apareçam pelo menos indícios veementes, senão provas irrefutáveis, do envolvimento do José Dirceu". Dependendo do que ocorrer com o Dirceu, "pode ficar igualmente difícil negar que Lula pelo menos sabia. Chefe da Casa Civil não é um ministro qualquer, é da copa e cozinha do presidente". As investigações chegando ao José Dirceu "vai ser necessário muita negociação para que se consiga manter a versão, que hoje é consenso entre os principais atores políticos e econômicos, de que Lula não está envolvido".
O cientista político Amaury de Souza tem uma tese para a existência de um consenso tão forte sobre a necessidade de preservar Lula. Segundo ele, há duas datas históricas que explicam isso: a primeira é 29 de setembro de 1992, o dia em que o Senado fez o julgamento do Collor, e o povo foi para as ruas comemorar. A outra é 24 de agosto de 1954. Getulio se suicidou de madrugada e houve um quebra-quebra nas ruas. "O custo político e social de um impeachment pode ser gigantesco, não dá para arriscar", adverte ele. "No caso do Collor, era todo mundo de um lado só, contra ele, mas na época do Vargas todos estavam contra ele e a situação mudou, com o choque da notícia", ressalta Souza.
O imponderável
Analisando a crise política atual, o cientista político Amaury de Souza acha que a situação do ex-chefe da Casa Civil José Dirceu, que vai depor na terça-feira no Conselho de Ética da Câmara, "é difícil", pelo precedente de seu ex-assessor Waldomiro Diniz, flagrado extorquindo um bicheiro, e de Marcelo Sereno, outro assessor, ligado a Delúbio Soares e Sílvio Pereira na direção do PT. "São dois auxiliares diretos de Dirceu envolvidos. E ele teve um papel determinante para a carreira meteórica de Delúbio e Silvinho no partido. Eram militantes de base que de repente foram alçados ao diretório nacional sem terem representatividade nenhuma", analisa Souza.
Se Dirceu confirmar na Comissão de Ética uma conversa que se atribui a ele, dizendo que tentou tirar Delúbio Soares da direção do PT e "não deixaram", atinge diretamente o presidente Lula, de quem Delúbio é considerado protegido. Na avaliação de Amaury de Souza, Dirceu já está indo para a Comissão de Ética com um problema sério, pois Renilda, a mulher de Marcos Valério, garantiu que ele teve a reunião com a diretoria do Banco Rural em Minas. Mas Souza acha que não vai acontecer com Lula o que aconteceu com Collor, cuja queda de popularidade ocorreu rapidamente durante 1991, com o fracasso do plano econômico e a conseqüente volta da inflação depois do seqüestro da poupança.
Analisando pesquisas de opinião da época, Amaury de Souza destaca que "da posse em 90 até o fim de 91, há uma queda constante de Collor, que se estabiliza no patamar de 10%, do qual nunca mais conseguiu sair". No caso de Lula, acredita Souza, "o processo de erosão da popularidade será através do que for sendo passado adiante em termos das descobertas da CPI".
Os dados de apoio a Lula já começam a mostrar a erosão da popularidade "por indicadores indiretos", comenta. Amaury de Souza lembra que o governo Lula está em um patamar de 40% de aprovação, enquanto o de Collor, na mesma época, estava em 10%. "A aprovação, tanto do governo quanto de Lula, tem pouca variação por indicadores como classe social, escolaridade. É mais baixa nas classes A e B, e mais alta nas classes C a E, mas uma diferença pequena estatisticamente. Mas em todos os cenários, ele já sumiu como opção de voto na classe A", destaca Souza.
Na intenção de votos no primeiro turno, os dados de janeiro deste ano mostram Lula oscilando entre 48% a 50%. Já caiu para a faixa de 35% a 40%. Toda crise envolvendo a corrupção no governo está sendo acompanhada mais de perto pelas classes A e B, e para baixo o processo de filtragem da informação é muito mais lento, comenta Amaury de Souza. "Há uma barreira simbólica fortíssima de identificação com Lula. O processo de perda de popularidade vai ser muito mais suave", diz ele.
O cientista político acha que o imprevisto, o imponderável, podem ser decisivos no desfecho do caso. No processo de Collor, não havia nada de inevitável para o impeachment, analisa Souza. Mesmo depois das denúncias de Pedro Collor, ele achava que ainda seria possível administrar a crise, que se tornou inadministrável por uma série de fatores: "Os operadores do Collor eram uns trapalhões, assim como são os de Lula. Deixaram rastro de todos os lados. Há uma riqueza de provas inacreditável".
Também o papel da imprensa foi fundamental, "fazendo seu primeiro grande aprendizado de liberdade de expressão depois da ditadura, e com isso a população se interessou muito pela CPI". Segundo Amaury de Souza, um estudo da cientista política Argelina Figueiredo mostra com muita clareza que CPIs contra o governo têm uma baixa probabilidade de sucesso. Apenas 54% terminam de alguma forma, e as mais exitosas são as que não vão contra o governo, tratam de temas como trabalho escravo, exploração infantil, meio ambiente.
Um dos fatores que Amaury de Souza destaca para esses desfechos é "o grau de atenção da opinião pública". Ele está convencido de que "se a opinião pública estivesse interessada no Banestado, a CPI não teria acabado em pizza". Ele realça que a crise do Collor começou a entrar em sua fase aguda por volta de fevereiro/março de 92, e entre abril e o final de agosto a opinião pública tomou conhecimento do que estava ocorrendo com o governo, e formou uma opinião fortemente negativa.
Para ele, a melhor pergunta das pesquisas de opinião começou a ser feita naquela ocasião: Você acredita que o presidente esteja diretamente envolvido no esquema de corrupção? Até abril, o patamar de Collor estava em 31%. Depois da entrevista de seu irmão Pedro, em junho a proporção já estava em 65%, em agosto já estava por volta de 75% e, às vésperas do julgamento, o índice foi para em torno de 85%. "Agora, no caso de Lula, em julho 39% disseram que ele estava envolvido, e desses só 14% disseram que está totalmente envolvido".
Mas Amaury de Souza chama a atenção para uma circunstância característica da nossa sociedade atual: a velocidade com que a notícia se propagou na população é maior do que na época de Collor, especialmente devido às transmissões pela televisão das sessões das CPIs e à internet.
Em maio, 51% acompanhavam a CPI dos Correios, e desses 16% estavam realmente atentos. Em junho, já eram 84% (e 36% realmente atentos). A mesma percepção aparece quando se pergunta se o entrevistado acredita em corrupção no governo Lula. Em março, 32% diziam que sim; em maio, 65%; em junho, 70%; e em julho, 78%. Na pesquisa da revista "Época" desta semana, o governo Lula aprece apenas atrás do de Collor no ranking dos mais corruptos.
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