Tucano afirma que governo combina patrimonialismo com utopia mercadista e diz que o PT se tornou a burguesia do capital alheio
RENATA LO PRETE
EDITORA DO PAINEL
FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL
Apontado hoje pelas pesquisas como o tucano mais competitivo para concorrer à Presidência em 2006, o prefeito de São Paulo, José Serra, diz que Luiz Inácio Lula da Silva é hoje menor do que a crise que assola seu governo. Diz ainda que o grupo do PT que chegou ao poder se transformou numa espécie de "burguesia do capital alheio". A atual gestão combina, segundo o prefeito, formas velhas e novas de patrimonialismo, associadas por sua vez à utopia mercadista e ao esforço de controle totalitário do aparato do Estado.
É a primeira vez, desde que o "mensalão" ocupou o centro das discussões políticas, que Serra, 63, aceita falar detidamente sobre a conjuntura nacional. Considera o desfecho da crise imprevisível e nega que o PSDB deva participar de qualquer acordo para circunscrever as perdas e punições.
E, embora defenda a investigação ampla do caixa dois alimentado por Marcos Valério em campanhas tucanas de Minas Gerais, em 1998, insiste em dizer que não se pode confundir irregularidades na arrecadação eleitoral com o assalto aos cofres públicos.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista, realizada na última quinta-feira, durante três horas, na sede da prefeitura.
Folha - Como entender e caracterizar a crise do governo Lula?
José Serra - A crise atual tem uma singularidade notável: ela não teve causas externas ao esquema de poder vigente. Se olharmos a crise do Getulio, em 1954, havia um enfrentamento claro, inclusive com as forças que haviam sido derrotadas em 1946. Havia golpismo. Havia mobilização militar. A tentativa de impedir o Jango de tomar posse estava no contexto da Guerra Fria. Havia um tipo de enfrentamento. E em 1964 também.
O Collor era um outsider, tinha perdido o controle da inflação -não tenho dúvida de que, se houvesse estabilidade econômica, a chance de ele sair teria sido menor. E o esquema de PC Farias parece um chá de senhoras diante dos escândalos atuais.
Que singularidade temos agora? Bonança no quadro econômico externo, inflação muito baixa, elites, do ponto de vista econômico, satisfeitíssimas com o governo, oposição democrática, ninguém tentando alterar a institucionalidade, militares inteiramente afônicos do ponto de vista político, sindicatos mansos.
Tudo saiu de dentro. Levou-se o estelionato e o abuso a tal nível que fatalmente o balão iria explodir em algum lugar e em algum momento. É a crise do modelo que se quis implantar no Brasil, do modo petista de governar. Ao analisá-la, a gente vê o vazio das teorias conspiratórias desta crise, de que teria sido causada pelas elites, pela oposição, pela imprensa.
Folha - O que o sr. quer dizer com "modo petista de governar"?
Serra - Na vida pública, especialmente quando você vem da esquerda, enfrenta um dilema quando chega ao governo. Tem de andar no fio da navalha para não perecer nem trair. O PT optou logo pela traição.
Lembro de ter dito, no debate final [com Lula, em 2002]: ou o Brasil vai ter uma crise como nunca teve ou haverá o maior estelionato eleitoral da história. Esse estelionato aconteceu e virou um pecado de origem.
Folha - Pode explicar melhor?
Serra - Na prática, resultou no revigoramento do patrimonialismo numa forma contraditória e combinada. De um lado, o patrimonialismo tradicional foi reforçado -ele que estava em decadência no governo FHC. De outro, o neopatrimonialismo sindicalista-bolchevique. Sem nenhuma utopia de igualdade.
O novo patrimonialismo pretendeu organizar uma classe social, inclusive com suas condições de reprodução. É a tentativa de formar uma nova classe para tomar conta do Estado. Com a diferença de que na Europa Oriental existia a utopia socialista. Aqui virou uma espécie de utopia mercadista com o braço direito e stalinismo com o esquerdo.
Qual é o símbolo dos tempos? É a gravata borboleta do Henrique Pizzolato [petista recém-afastado da diretoria de marketing do BB], com o lencinho no bolso, junto com a Land Rover do Silvio Pereira [ex-secretário-geral do partido]. O PT se tornou a burguesia do capital alheio.
Folha - Que papel joga nessa suposta tentativa de controlar o Estado a gestão dos fundos de pensão?
Serra - O papel dos fundos é chave. Em geral, foram enfatizadas as denúncias da luta interna do PT pela manipulação dos fundos [Serra comentava a entrevista de Pizzolato à Folha, publicada no domingo passado]. Mas eu fiquei fascinado com outro aspecto: esse é um burguês do capital alheio. É um líder sindical discutindo e decidindo sobre os grandes investimentos. Não é preconceito contra líderes sindicais. Só que líder sindical não é burguês, que decide sobre rumos do capital nem político nem administrador público.
A República sindicalista que a direita tanto temia em 1964 acabou acontecendo no Brasil. Ela combina dois modos de patrimonialismo com a exaltação do mercadismo e o aparato de controle.
Folha - A extensão da crise não tende a produzir a sensação de que todos os partidos estão comprometidos do ponto de vista ético?
Serra - Nunca achei que o PT tinha o monopólio da ética, mas eu achava que ele era um grande reduto da ética. Eu achava, em 2002, que eles seriam muito incompetentes no governo, mas não que teriam essa perfomance ética. O caso Santo André está aí para demonstrar, é anterior a tudo isso. Eu mesmo sempre subestimei os eventos de Santo André, achava que eram localizados.
O PT virou uma espécie de Luís 15 da ética, e os outros eram tratados como súditos. O Silvio Pereira ter aceito o carro mostra isso. Foi porque ele não é inteligente? Não. Fez por achar que tinha o monopólio da ética e que então podia fazer o que quisesse.
Folha - Na semana que passou, descobriu-se que também o tucano Eduardo Azeredo utilizou, em campanha eleitoral, recursos vindos das empresas de Marcos Valério.
Serra - Em primeiro lugar, o Eduardo Azeredo é um homem extremamente decente, em sua vida privada e em sua vida pública. Segundo, ele se ofereceu para esclarecer coisas na CPI. Terceiro, essa questão está girando em torno de supostos crimes eleitorais. É importante, mas não se pode confundir o caixa dois eleitoral com o caixa público, que é o desvio de dinheiro do governo para a corrupção e para a compra de votos.
Não me oponho -nem o PSDB- a que se investigue a questão eleitoral. Mas não pode confundir. Agora se trata de ver a roubalheira montada nos Correios, no IRB, as manipulações nos fundos de pensão, nas concorrências da Petrobras, no Banco do Nordeste. Há um mundo de coisas no atual escândalo que não guarda relação com financiamento de campanhas eleitorais.
Folha - Trata-se de controlar o Congresso, de optar pelo exército mercenário em vez de partilhar poder, como disse Roberto Jefferson?
Serra - Eu já ouvi justificativas para o "mensalão" do tipo "compram-se os parlamentares para votar coisas boas para o país". Mas até desse ponto de vista a análise não resiste, porque essa maioria foi fútil. O que se votou no Congresso? Uma reforma previdenciária não-concluída. Não se votou reforma tributária nenhuma. Não precisaria de "mensalão" para isso. "Mensalão" para votar Lei de Falências? Ridículo.
Na verdade, por trás do "mensalão" esteve a idéia totalitária do controle absoluto de todos os mecanismos de poder. E a criação, em todo o país, das condições de reprodução daquela nova classe, ocupando toda a máquina.
Folha - Mesmo após as privatizações, não teria sobrado um número excessivo de cargos no governo federal para lotear entre os políticos?
Serra - Eu fui presidente do Programa Nacional de Desestatização e me lembro de uma palestra na Câmara em que sublinhei o fato de que enxugar o Estado enfraqueceria o patrimonialismo. Porque no regime democrático aberto, com o peso e a heterogeneidade do Congresso, com esse sistema político-partidário, com o sistema eleitoral superado e deficiente que temos, as empresas estatais estarão sempre sob a tensão do loteamento. Imagina o que teria feito o PT agora se tivesse à disposição todas as nomeações na área de telecomunicações?
Folha - A sua restrição ao "mercadismo" petista embute uma crítica aos fundamentos da política econômica do governo Lula?
Serra - A área da Fazenda foi relativamente preservada no governo Lula. Hoje os ministros com mais credibilidade são o Palocci [Fazenda] e o Márcio Thomaz Bastos [Justiça]. Para o Lula, o Palocci foi um achado.
Mas, em relação à economia, acho melancólico o Brasil ter uma taxa de juro real de 15%. É uma espécie de preço que se paga para ter o PT governando em condições razoáveis de estabilidade.
Muita coisa certa que vinha do passado foi deixada de lado, e coisas que mereciam ser revisadas foram reforçadas, por exemplo, a atual política de metas de inflação, muito primitiva e que, no futuro próximo, dará origem a teses de mestrado e doutorado e a mais uma autocrítica do FMI. Da atual política econômica, o lado mais correto é o fiscal. É uma política fiscal razoavelmente austera.
Mas a política monetária errada destrói a política fiscal, pois ela eleva brutalmente o gasto em juros, freia a atividade econômica e sobrevaloriza o câmbio. Aliás, uma coisa saudável nessa discussão sobre o déficit nominal zero é que ela coloca na mesa o papel dos juros como gasto. Porque, no Brasil, parece que os encargos decorrentes dos juros passaram a ser uma substância misteriosa cujo pagamento pelo governo não representa gasto.
O Brasil ter o maior juro do mundo com déficit nominal entre 2% e 3% é absurdo. Não há razão para isso, exceto o círculo vicioso que se criou e a própria fragilidade do governo do PT, que tem de pagar um preço altíssimo por ela.
Mais melancólico ainda é constatar que o risco internacional do Brasil é hoje semelhante ao da Argentina, apesar da moratória dos conterrâneos do Tevez, e seria patético atribuir esse fato ao déficit público brasileiro.
Mas, ao contrário do que diz a esquerda petista, a crise atual não decorre da política econômica. Não que ela esteja certa, mas não decorre. A crise política não tem conexão com a política econômica. Não é ela que explica o "mensalão" e o assalto aos cofres públicos.
Serra - Eu acho que o Brasil pode e quer sair desse imbróglio. Sairá para melhor ou para pior? Não se sabe. Isso vai depender muito do Lula. Por enquanto, ele só está defendendo o indefensável, dizendo que tudo se resume a problemas de campanha, o que evidentemente não é verdade. Além disso, está criando espantalhos, essas elites secretas que estariam conspirando. E se desvinculando do PT, como se nada tivesse a ver com as ações de seu partido e de seus homens de confiança. Nem a fada Morgana acreditaria nisso.
Às vezes ele tenta passar a idéia de que os acontecimentos atuais refletem uma luta dos mais abastados contra os mais necessitados, dos mais cultos contra os menos cultos devido à falta de oportunidades na vida. É isso o que ele tenta fazer: como se tudo não passasse de uma espécie de trama para tirar um filho de analfabetos do poder. Na verdade, tem faltado ao Lula a humildade que a vitória deve alimentar e a altivez a que a derrota deve nos conduzir.
Para que o Brasil saia bem desse imbróglio, o Lula terá de ser maior do que a crise. Mas ele está sendo bem menor do que ela.
ISTO É SERRA
ESTELIONATO ELEITORAL
Lembro de ter dito, no debate final [com Lula, em 2002]: ou o Brasil vai ter uma crise como nunca teve ou haverá o maior estelionato eleitoral da história. Esse estelionato aconteceu
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