O ciclo de redemocratização está sendo concluído com a metástase do patrimonialismo brasileiro. Foram longos 31 anos, que passaram pela flexibilização das eleições de 74, a anistia de 79, as eleições de 82 e de 85, e da Constituinte, em 86, e os trabalhos dela entre 87 e 88. Continuaram na eleição de 89, no teste institucional da saída de Collor e na cristalização de consensos dos governos FHC (Estado, moeda, abertura, fiscal, focalizações sociais). E se encerram agora, com o governo do PT/Lula mostrando que na democracia eleitoral brasileira cabem todos, sem exceção.
Cabe aos intelectuais, no velório da nossa transição de 31 anos, ajudar a sociedade a entender que ciclo é este que ora se abre |
Em 1999, texto do cientista político Nelson Carvalho falava dessa transição na forma de transação. Deu-se "num momento de força das elites autoritárias, que desencadeiam o processo de abertura, antes por escolha que por necessidade". O autor fala de uma condição: a capacidade de o regime criar um partido competitivo para a transição, ganhe ou não eleições.
A lógica desse processo se traduz nos ganhos incrementais que a oposição vai tendo ao longo de eleições sucessivas e que aparecem como a legitimação da democratização. Esta dinâmica. De um lado, os freios de arrumação no pacote de abril de 77, na vinculação de 82, na eleição presidencial após a Constituinte. De outro, setores modernizantes de dentro do regime garantindo o ponto de partida, com Tancredo.
Na transição à brasileira, as eleições foram seu corpo e sua alma, com os consensos legitimadores pós-Collor, âncoras da estabilidade política. As forças políticas não se deram conta de que esse processo as estava igualando, não como uma aproximação ao centro, mas como ratificadoras dessa base eleitoral de legitimação. Por isso, o governo Lula se parece tanto com os anteriores.
Giannotti disse, dias atrás, que Collor era um "outsider", mas que "o PT não é um outsider; é parte inerente ao sistema". E concluiu: "Então essa crise é uma crise do sistema político como tal". Ele não usou a palavra eleitoral, pois trata de dimensão muito maior.
Maria Celina D'Araujo diz que esta crise "é o fim do regime militar". Certamente. Se a lógica da democratização era o fato de o regime ter um partido competitivo, esse partido deixou de existir exatamente neste momento.
Antes, dividiu-se em dois. O PP dissolveu-se de sua origem ideológica, deixando seus poucos quadros de origem num constrangimento terminal. O PFL realizou um congresso de "refundação". Renova seu programa e sua simbologia, impulsionado pela práxis de ser oposição. Sublinha seu papel de origem, mas se descola dela. Não há mais "o partido político do regime". O general Golbery pode descansar em paz.
O sistema político brasileiro -e aqui quero entender o Estado em todas as suas vertentes- se metrossexualiza nas eleições sucessivas. Não muda. A histórica ruptura entre representantes e representados permanece. Os partidos continuam de cooptação. Uma atração fatal do Estado brasileiro, que traveste o PT de oposição ao governo.
Há sete anos o Congresso não vota os vetos presidenciais e as contas dos governos. Ou seja, as suas duas funções, legislar e fiscalizar, não se completam.
As empresas estatais mostram seu descolamento. Os ministros da Fazenda, Comunicação e Minas e Energia "nada têm a ver" com os escândalos em suas empresas, IRB, Correios e Furnas. A Coaf produz relatórios de saques em dinheiro que, nos Estados Unidos, iriam parar na mesa do secretário do Tesouro e do FBI. Aqui, ficam apenas como registros, cultura inútil. Os sistemas de controle interno inexistem.
O exercício político de governo é sempre a retenção de poder e pouco mais que isso. Pelo PT, vem a subversão do outro poder por meio do aluguel de mandatos. E, na crise, transfere ministros para assumir o partido, numa demonstração de desprezo pelo Estado como instituição com natureza própria.
Lênin, em "O Que Fazer", ajuda a entender as razões disso quando mostra a natureza distinta dos líderes sindicais (de natureza privada) e dos políticos. Datado de 1902, ainda é recomendável aos líderes do PT.
Felipe Gonzáles falava, em 1987, sobre a diferença entre socialistas e liberais: para os primeiros, a soberania popular se expressa pelo poder político; para os segundos, expressa-se pelo mercado. E, concluía, inclusive pelo mercado de trabalho, numa referência à simples transmutação de sindicalistas à política.
Para os que em 64 pensavam numa República sindicalista como radicalismo de esquerda, chegou a hora de ver como estavam errados. Aí estão os fatos. A fulanização deles que corra por conta da CPI, da Polícia Federal e do Ministério Público.
Aos intelectuais e pesquisadores, cabe sair de sua perplexidade e ajudar a sociedade a entender, neste velório da longa transição brasileira de 31 anos, o que precisa vir agora, o que se deve desentranhar, substituir, extirpar do sistema político brasileiro lato sensu. Entender que ciclo é este que se abre agora.
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