o globo
Jorge Amado, de quem pelo resto da vida me sentirei órfão, sempre me ensinava alguma coisa, às vezes obliquamente, com uma ironiazinha amistosa e divertida (agora me questiono, desculpem estes parênteses mal colocados, sei que abuso: pensei em escrever "amorosa" e aí usei "amistosa", mas mandam a honestidade e a vergonha confessar que foi porque não quis me expor a piadinhas que na verdade refletiriam grossura ou má vontade da parte de seu autor e que, por que não dizer, eu estava agindo preconceituosamente, pois posso perfeitamente descrever meu relacionamento com ele como de amor fraterno, que eu tinha por ele e sabia que ele tinha por mim e portanto refaço o que ia fazer): Jorge Amado às vezes me passava ensinamentos com uma ironiazinha amorosa e divertida, volta e meia expressa apenas em gestos, mas quase sempre com histórias que eram meio parábolas. Ou então, sabedor de que meninos como eu e muitos outros o viam como sábio, exemplo de grande artista e a encarnação da generosidade, dava lições mesmo. Tenho-as bem estocadas na cabeça e consigo fazer uso de algumas, porquanto para outras careço da necessária categoria.
Uma dessas aulas ele deu somente a mim, embora certamente a tenha repetido a outros, em ocasiões diferentes. Do mesmo jeito com que não planejava seus romances e tratava os personagens como gente, também curtia com nossa cara, quando ouvia planos, coletivos ou pessoais. Não adianta planejar nada na vida, me disse ele, eu não planejo nada, descobri logo que é besteira. Você pensa que vai ser isso ou aquilo, que vai estar em tal ou qual lugar em tal ou qual época, que não vai se meter em tal ou qual coisa, e de repente a vida o põe exatamente na situação que o sujeito nunca concebeu para si.
É verdade. Ser jornalista veio sem plano nenhum e muitíssimo menos viver de escrever. Claro, devo ter nascido com algum pendor natural, um certo jeito, e meu pai não era moleza. No setor "esse rapaz é um analfabeto", penei bastante. E acabei na situação em que hoje me encontro, na laboriosa faina da pena. Combinação de acaso, sorte, destino, sei lá. O fato é que me meti nisso e não dá mais para sair, embora me ataque uma vontade danada, de vez em quando. Mas já me disseram que minha aposentadoria pelo INSS, além de problemática, só ia valer umas duas cestas básicas e o jeito é prosseguir.
E, então, ainda sem querer, acabo me metendo onde nunca previ. Tenho talvez o temperamento esquentado e não ouço "liberdades", como se diz na Bahia, sem dar troco. Mas nunca fui de briga, nunca tive ânimo polêmico, detesto discussão de qualquer tipo e talvez assista razão a quem ache que me enquadro na categoria boa-praça. E aí, de repente, sem que me dê conta, lá estou envolvido em bate-bocas sobre assuntos que despertam paixões ou mexem com interesses fortes. Que é que se vai fazer, acontecem coisas que exigem manifestação, entram na cabeça e se impõem como assuntos.
O resultado não pode ser classificado de divertido. Claro, há muita gente que concorda comigo e até me pára na rua para cumprimentar-me, Mas também me xingam que vocês precisam ver. E, como, aliás, já escrevi aqui algumas vezes, me acusam de estar no mínimo sendo usado por um esquema cujos tentáculos diabólicos me enredam sem que eu perceba e no máximo de estar a serviço, quiçá remunerado, desse ou daquele, conforme o momento. Ou então me chamam de cretino mesmo. Tudo bem, faz parte. Escrever em jornal acarreta esse tipo de situação e cada um tem direito de pensar o que quiser.
Mas há um aspecto para o qual quero chamar a atenção. Já vi por aí usada a expressão "ser Tiradentes com o pescoço alheio". Volta e meia me vejo na posição de dono do pescoço. Reclamam porque "você não desce mais o pau", "está fraco, tinha que mandar ver mais pesado" e assim por diante. Mas eu não escrevo esta coluna para xingar ninguém. E, principalmente, não sou paladino de nada. Nas semanas recentes, já me chamaram de covarde porque não fundo uma ONG para lutar pelas minhas causas (não sei bem quais são, mas devo ter algumas), porque não mantenho um blog na internet para mandar brasa contra os descalabros e, vejam vocês, porque não me candidato a alguma coisa — benzo-me e bato na madeira ao escrever isto.
Entrementes, quem me sustentaria, imagino eu, seriam tapinhas nas costas e pronunciamentos empolgados em botecos. Não poderia, naturalmente, escrever para jornais e muito menos teria tempo para escrever um romance, ato que fazem por impedir e atrapalhar o tempo inteiro, com as solicitações mais disparatadas imagináveis, além das legítimas, mas que, se eu fosse atender, não teria tempo nem para dormir. O paladinismo não é a minha, da mesma forma que sentar para trabalhar não é a do presidente, embora eu leve a vantagem de não ter pedido voto a ninguém. E agora o dr. Dirceu seguiu a determinação do dr. Roberto Jefferson, saiu do governo com a cabeça erguida para disfarçar o rabo entre as pernas e sustenta que a direita (sic) se mobiliza para desestabilizar, ou até derrubar, um governo popular e reformista. E eu falando contra ele, que coisa desairosa, devo voltar à humilde seara a que pertenço, a de Itaparica mesmo e ficar tentando fazer umas gracinhas. Está certo, vou procurar parar com essa besteira de reclamar e prestar atenção ao que o -corre no país, vou ver se começo a estudar borboletas ou qualquer coisa assim, quem sabe deixam de querer que eu me candidate e funde ONGs. E, quanto ao que escrevi antes, sinto-me à vontade para dizer-lhes que esqueçam. Disponho de precedentes respeitáveis, o dr. FH pelos livros e o presidente pelas promessas da campanha. Aguardem a próxima crônica, descrevendo a empolgante tarde que passarei jogando alpiste para as rolinhas da Dias Ferreira.
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