Colocado numa panela com água em ebulição, o sapo pulará fora imediatamente. Mas, numa panela com água fria sobre o fogo, o sapo permanecerá quieto, acomodando-se gradativamente à temperatura, esquentando até morrer cozido. A fábula aponta o perigo que ronda as pessoas, principalmente quando estas, adaptandose ao ambiente, são insensíveis à realidade que as cerca. Onipotentes, igualam-se a heróis ocupando o lugar de Deus. É o caso do presidente Lula, paciente da síndrome do anfíbio, não apenas por ter sido agraciado, um dia, com o epíteto de 'sapo barbudo', dado pelo falecido Leonel Brizola, mas por ser contumaz apreciador de água quente, que borbulha numa cachola de idéias insensatas.
Ao pôr a culpa dos juros altos nos acomodados glúteos de pessoas que, em sua opinião, preferem o chope e o conforto da cadeira do bar à ida a bancos para reclamar de taxas, Lula comete o desatino de atirar contra o próprio pé e, ainda por cima, desancar o que seu governo propaga como sendo 'o melhor produto do Brasil: o brasileiro', mote, aliás, de autoria de Câmara Cascudo, potiguar considerado o maior estudioso de nossa cultura popular.
Pior é que a impropriedade ocorre no momento em que o governo do PT comemora 25 anos do famoso discurso em que Lula, encarapitado no palanque do Estádio de Vila Euclides, em São Bernardo, estampando a cara de João Ferrador na camiseta com o refrão 'hoje eu não tô bom', fazia a peroração: 'Neste país rico e poderoso, com a décima economia do mundo, não dá pra rir diante da miséria escandalosa; não dá pra rir diante dos milhões de pais e mães desempregados que não têm nem um pedaço de pão para dar aos filhos; com a falta de saúde e com centenas de pessoas fazendo filas nos hospitais, muitas das quais morrem nos seus corredores, sem atenção digna e sem dinheiro pra comprar remédios; com milhões de crianças sem escola e com outras milhares submetidas a trabalhos mais duros que nos tempos da escravidão. Você acha que diante de tanta desgraça eu vou ter coragem pra rir?' Naquele 1.º de maio de 1980, Lula explicava por que não conseguia rir. O povo sofrido era a razão. Neste 1.º de maio de 2005, Lula exibe largo sorriso, abrindo também sorrisos de platéias, com metáforas para explicar a miséria e os costumes. Só que o povo, portando as carências de 25 anos atrás, agora tem parte na maldição que assola o País. Não foi o que disse quando explicou os altos juros? Se pretendia se referir apenas ao 'traseiro' da classe média, promove um desmonte na pirâmide social, primeiro, por considerá-la apartada do povo; segundo, porque não percebe que o empobrecimento crescente desta classe torna seus elos imbricados aos fios das massas carentes. Quanto às taxas, Lula esqueceu que ele, mais que ninguém, é responsável por juros reais de quase 13%, que dão ao Brasil o campeonato mundial da modalidade. O comandante-mor da política econômica é o presidente. Logo, Lula é o principal opositor dele mesmo. O presidente, também se sabe, não tem apetência pelo mister da gestão. Cobranças de ações, despachos, análise de relatórios, enfim, a agenda administrativa é magra. Mas é gorda a agenda de discursos. Lula também não tem grande apreço pelo Parlamento, desde os tempos em que lá divisou uns '300 picaretas'.
Ele gosta é de subir em palanque. Se o gosto pela palavra improvisada é o mesmo, o que mudou no perfil do ex-metalúrgico? Muita coisa. O patamar social, por exemplo. Da base da pirâmide, Lula saltou para o andar superior das elites. Isso ele não reconhece. Pisa fundo na idéia de que, mesmo sentado na cadeira mais alta da República, não é elite política. Intitula-se um sindicalista em 'estado' de presidente, como se quisesse dizer: 'Daqui a pouco voltarei para comandar uma grevinha no ABC.' Muitos crêem na lorota. Ou a vista embaçada do Lula metalúrgico não lhe permite perceber a mudança ocorrida com o Lula presidente, ou ambos os perfis se fundem, maquiavelicamente, para confundir a opinião pública e aumentar um mistério, reconheça-se, regado com carisma. Essa é a armadilha mental que explica contradições e pensamentos curvilíneos. Como sindicalista, Lula crê que pode falar o que lhe vier à cabeça. E parece se amparar nessa condição para justificar as doses de insensatez que jorram de sua boca presidencial.
Há um traço sinuoso nessa dupla face. Se milhares de desempregados continuam a não ter um pedaço de pão para dar de comer aos filhos, o sindicalista garante não ter nada que ver com isso, porque fazem parte da herança maldita. (Há quase 2 milhões de desempregados na Grande São Paulo.)
Se faltam remédios em hospitais e as filas continuam quilométricas, o sindicalista credita o problema à herança maldita. E, de maldição em maldição, o sindicalista vai fazendo oposição, enquanto o presidente se exime de responsabilidades. Se não acendeu nenhuma fogueira no inferno, Lula só pode ter feito coisas boas no céu.
Pois não é isso mesmo que ele está dizendo? Veja-se o que o Estado registrou quarta-feira, 27: 'Estou convencido de que, quando terminar nosso mandato, a gente poderá discutir o que aconteceu antes e depois de nossa passagem pelo governo.' O presidente fazia a apologia de investimentos e ações nos campos da ciência, educação e agricultura familiar.
O poeta Virgílio, cultor das artes, cunhou a frase: 'Poetis et pictoribus ominia licet' ('aos poetas e pintores tudo é permitido'). O autor da Eneida justificava, assim, expressões bárbaras de seus ilustrados pares. Com todo o respeito, nosso presidente não cultiva o altar das artes. Se não der um basta à verborragia obtusa que escapole de sua boca, Lula acabará cozendo o corpo na panela de água quente em que se joga toda vez que fala sem medir conseqüências. Que hoje, 1.º de maio, os brasileiros sejam brindados com um presidente mais afeito à administração e com um verbo mais equilibrado.
(01/05/05)
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político
O Estado de S. Paulo
Ao pôr a culpa dos juros altos nos acomodados glúteos de pessoas que, em sua opinião, preferem o chope e o conforto da cadeira do bar à ida a bancos para reclamar de taxas, Lula comete o desatino de atirar contra o próprio pé e, ainda por cima, desancar o que seu governo propaga como sendo 'o melhor produto do Brasil: o brasileiro', mote, aliás, de autoria de Câmara Cascudo, potiguar considerado o maior estudioso de nossa cultura popular.
Pior é que a impropriedade ocorre no momento em que o governo do PT comemora 25 anos do famoso discurso em que Lula, encarapitado no palanque do Estádio de Vila Euclides, em São Bernardo, estampando a cara de João Ferrador na camiseta com o refrão 'hoje eu não tô bom', fazia a peroração: 'Neste país rico e poderoso, com a décima economia do mundo, não dá pra rir diante da miséria escandalosa; não dá pra rir diante dos milhões de pais e mães desempregados que não têm nem um pedaço de pão para dar aos filhos; com a falta de saúde e com centenas de pessoas fazendo filas nos hospitais, muitas das quais morrem nos seus corredores, sem atenção digna e sem dinheiro pra comprar remédios; com milhões de crianças sem escola e com outras milhares submetidas a trabalhos mais duros que nos tempos da escravidão. Você acha que diante de tanta desgraça eu vou ter coragem pra rir?' Naquele 1.º de maio de 1980, Lula explicava por que não conseguia rir. O povo sofrido era a razão. Neste 1.º de maio de 2005, Lula exibe largo sorriso, abrindo também sorrisos de platéias, com metáforas para explicar a miséria e os costumes. Só que o povo, portando as carências de 25 anos atrás, agora tem parte na maldição que assola o País. Não foi o que disse quando explicou os altos juros? Se pretendia se referir apenas ao 'traseiro' da classe média, promove um desmonte na pirâmide social, primeiro, por considerá-la apartada do povo; segundo, porque não percebe que o empobrecimento crescente desta classe torna seus elos imbricados aos fios das massas carentes. Quanto às taxas, Lula esqueceu que ele, mais que ninguém, é responsável por juros reais de quase 13%, que dão ao Brasil o campeonato mundial da modalidade. O comandante-mor da política econômica é o presidente. Logo, Lula é o principal opositor dele mesmo. O presidente, também se sabe, não tem apetência pelo mister da gestão. Cobranças de ações, despachos, análise de relatórios, enfim, a agenda administrativa é magra. Mas é gorda a agenda de discursos. Lula também não tem grande apreço pelo Parlamento, desde os tempos em que lá divisou uns '300 picaretas'.
Ele gosta é de subir em palanque. Se o gosto pela palavra improvisada é o mesmo, o que mudou no perfil do ex-metalúrgico? Muita coisa. O patamar social, por exemplo. Da base da pirâmide, Lula saltou para o andar superior das elites. Isso ele não reconhece. Pisa fundo na idéia de que, mesmo sentado na cadeira mais alta da República, não é elite política. Intitula-se um sindicalista em 'estado' de presidente, como se quisesse dizer: 'Daqui a pouco voltarei para comandar uma grevinha no ABC.' Muitos crêem na lorota. Ou a vista embaçada do Lula metalúrgico não lhe permite perceber a mudança ocorrida com o Lula presidente, ou ambos os perfis se fundem, maquiavelicamente, para confundir a opinião pública e aumentar um mistério, reconheça-se, regado com carisma. Essa é a armadilha mental que explica contradições e pensamentos curvilíneos. Como sindicalista, Lula crê que pode falar o que lhe vier à cabeça. E parece se amparar nessa condição para justificar as doses de insensatez que jorram de sua boca presidencial.
Há um traço sinuoso nessa dupla face. Se milhares de desempregados continuam a não ter um pedaço de pão para dar de comer aos filhos, o sindicalista garante não ter nada que ver com isso, porque fazem parte da herança maldita. (Há quase 2 milhões de desempregados na Grande São Paulo.)
Se faltam remédios em hospitais e as filas continuam quilométricas, o sindicalista credita o problema à herança maldita. E, de maldição em maldição, o sindicalista vai fazendo oposição, enquanto o presidente se exime de responsabilidades. Se não acendeu nenhuma fogueira no inferno, Lula só pode ter feito coisas boas no céu.
Pois não é isso mesmo que ele está dizendo? Veja-se o que o Estado registrou quarta-feira, 27: 'Estou convencido de que, quando terminar nosso mandato, a gente poderá discutir o que aconteceu antes e depois de nossa passagem pelo governo.' O presidente fazia a apologia de investimentos e ações nos campos da ciência, educação e agricultura familiar.
O poeta Virgílio, cultor das artes, cunhou a frase: 'Poetis et pictoribus ominia licet' ('aos poetas e pintores tudo é permitido'). O autor da Eneida justificava, assim, expressões bárbaras de seus ilustrados pares. Com todo o respeito, nosso presidente não cultiva o altar das artes. Se não der um basta à verborragia obtusa que escapole de sua boca, Lula acabará cozendo o corpo na panela de água quente em que se joga toda vez que fala sem medir conseqüências. Que hoje, 1.º de maio, os brasileiros sejam brindados com um presidente mais afeito à administração e com um verbo mais equilibrado.
(01/05/05)
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político
O Estado de S. Paulo
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