domingo, maio 01, 2005
AUGUSTO NUNES:Testemunhas indefesas
01.05.2005 | O cinema já mostrou em dúzias de filmes como funciona o programa de proteção a testemunhas nos Estados Unidos, copiado por numerosos países interessados em blindagens do gênero. Faz sentido. Monitorado pelo FBI, o serviço americano é o melhor do mundo.
Formalizada a incorporação ao programa, os perseguidos e suas famílias logo recebem novos documentos. Os nomes mudaram, as fotos mostram rostos retocados por bisturis. Logo transferidos para endereços sigilosos, comprometem-se a agir com aguda discrição. Devem ficar em casa a maior parte do tempo. Devem engavetar o passado: contatos com amigos e parentes são proibidos. Um inscrito no programa tem de esquecer quem foi.
"O que ganho em troca disso tudo?", pergunta o advogado encarnado por Tom Cruise no filme "A Firma", perplexo com tantas cautelas. "A vida", resume o homem do FBI. Milhares seguem vivos graças à solidez do esquema. A audácia dos caçadores, ressalve-se, perfurou mais de uma vez o escudo. Testemunhas foram fuziladas enquanto aguardavam a hora do sumiço, ou assassinadas no endereço supostamente secreto. Nada disso arranhou a excelente imagem do serviço. Reveses episódicos não têm tanta relevância aos olhos de especialistas.
Não se registrou nenhuma morte, por exemplo, no Programa de Proteção a Testemunhas criado no Brasil em 1996, subordinado à Secretaria Especial de Direitos Humanos. Mas a contemplação do modelo americano e da versão tropical informa que são tão parecidos quanto a Quinta Avenida e a Baixada Fluminense.
"Temos capacidade para proteger 930 pessoas, mas só 650 são atendidas no momento", diz a coordenadora-geral Nilda Turra. Além do Distrito Federal, 16 Estados mantêm extensões do programa federal. Se os mandarins da política econômica forem indulgentes, matriz e filiais receberão em 2005 a verba prometida pelo orçamento: quase R$ 12 milhões.
Nos Estados Unidos, o programa tem acesso irrestrito ao dinheiro necessário. Distante desse requinte, o primo pobre faz o que pode com o pouco que tem. Cada protegido custa de R$ 500,00 a R$ 600,00 por mês. A quantia supre todas as necessidades básicas, e supera amplamente o que ganhavam na vida anterior. "Muita gente se sente perdida quando deixa o programa porque não encontra meios de sobreviver", conta Nilda. O prazo pode ser prorrogado se os relatórios dos analistas concluírem que o protegido ainda corre perigo. Nos Estados Unidos, só sai do programa quem quer.
O sistema brasileiro prevê a transferência dos inscritos para outros Estados. A maioria recusa a idéia. "Eles não querem ficar longe de onde moravam", diz Nilda. Muitos sucumbem à saudade e violam normas básicas de segurança. "Uns telefonam para jornalistas e expõem seus casos, outros telefonam para amigos e contam onde estão vivendo", lamenta a coordenadora. "E poucos resistem à tentação de ligar para a antiga namorada."
O modelo americano contempla, essencialmente, a preservação da vida ameaçada. O brasileiro busca isso e algo mais. "Além de garantir a segurança física, missão que o programa tem cumprido satisfatoriamente, procuramos promover a reinserção social de quem completa o tempo de permanência. É difícil retomar a vida interrompida." Difícil, porque faltam empregos. E também perigoso: como regressar sem riscos ao lugar de onde fugiram?
"É uma pena que o programa não seja tão conhecido", lastima Nilda. "Poderia atender a muito mais gente. Para conseguir proteção, basta encaminhar o pedido a qualquer delegacia." Aí mora outro perigo: procurar a polícia pode ser o caminho mais curto para a cova rasa num país que vai banalizando até massacres. Ainda há manchas de sangue nos locais alvejados por policiais que exterminaram 30 brasileiros na Baixada. Os jornalistas vão sumindo de Nova Iguaçu e Queimados. Ficam os que ousaram testemunhar contra os autores da chacina. Eles e o medo.
Nenhuma testemunha recorreu ao programa. Os sobreviventes aprenderam desde sempre que o governo não sabe protegê-los.
no mínimo
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