quinta-feira, maio 26, 2005

AUGUSTO NUNES:A incontrolável paixão de Dirceu


Uma das grandes espécies da política brasileira inocula nos filhotes, ainda no útero, a incontrolável aversão à verdade. Quem faz parte do grupo mente tão freqüentemente que mesmo a confissão de que mente não parece convincente. Um dos caciques dessa tribo é o ministro José Dirceu, protagonista do programa Roda Viva transmitido pela TV Cultura na noite de 16 de maio. Duas horas de entrevista reafirmaram a impossibilidade de devassar a alma de um desconfiado profissional.

A certa altura, a jornalista Thaís Oyama formulou, com voz suave e firme, a pergunta perturbadora. Sentado no centro da arena, o chefe da Casa Civil manteve os músculos imóveis enquanto a cabeça viajava no tempo e no espaço. Estacionou na década de 70, em Cruzeiro do Oeste, interior do Paraná. Ali, com outro nome e o rosto remodelado pela cirurgia plástica, Dirceu morou cinco anos.

Nesse período, jamais revelou a real identidade. A ninguém. Namorou uma jovem da cidade - e não disse quem era. Casou-se - e não disse quem era. Teve um filho - e não disse quem era. Dirceu não achava que alguém fora enganado nesse episódio?, quis saber Thaís. Os segundos consumidos pelas interrogações foram suficientes para que o entrevistado expulsasse a palidez do rosto, blindasse as cordas vocais contra eventuais tremores e partisse para a desconversa.

"Eu simplesmente me apaixonei", começou. "Tanto que me casei e tive um filho. Foi isso. A gente teve de passar por essas coisas". Por que não contara a verdade? "Porque não podia", resumiu. "Quem está na clandestinidade precisa agir assim. Você sabe o que acontecia naquela época aos perseguidos políticos". Outro jornalista mudou de assunto - e Dirceu pôde afastar-se da escala mais sombria dos muitos caminhos que percorreu.

Alguns espectadores podem ter-se comovido com a história. Depois dos anos de exílio em Cuba, submetido à dura rotina de guerrilheiro aprendiz, o forasteiro jovem e atraente irrompeu em Cruzeiro do Oeste carregando um coração carente, pronto para bater descompassado de amor. Era natural que se apaixonasse por aquela loura bonita, de boa família, cobiçada por todos os solteiros da cidade. O que haveria de errado nisso?

Em princípio, nada. O problema está no enredo, mal costurado e repleto de detalhes intrigantes. São tantas as coincidências, são tantos os acasos aparentes que só ousariam debitá-los na conta do destino os muito ingênuos ou muito espertos. Os manuais da guerrilha recomendam aos clandestinos certas cautelas forjadas para exorcizar suspeitas. Devem, por exemplo, misturar-se aos nativos, copiar-lhes a forma de vida, tentar tornar-se um deles. Não há camuflagem melhor que casamento com moça da terra.

Por que Dirceu não revelou quem era depois da noite de núpcias? Ou durante a lua-de-mel, que convida a efusões e confidências? Porque não confiava na mulher que garante ter amado. Amor é entrega, mas Dirceu não se entregou: o objeto da paixão poderia entregá-lo à polícia. Não baixou a guarda nem mesmo quando o filho nasceu. Àquela altura, a mulher não oferecia riscos. Confrontada com a verdade, provavelmente aceitaria sem rancores o passado de mentiras, afagaria aquela cabeça atormentada por dissimulações e silêncios impostos a perseguidos. Mas não disse quem era.

Só contou a verdade quando a decretação da anistia o libertou do medo, da clandestinidade, da modorra de Cruzeiro do Oeste - e da família erguida sobre alicerces de areia. Dispensada a camuflagem, acabou-se também a paixão. Dirceu partiu para Cuba. Restaurados o rosto e o nome, voltou como quem vinha do exílio no exterior. E então pôde exibir publicamente a grande e única paixão. A paixão pelo poder.
JB

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