sábado, março 26, 2005

VEJA on-line-André Petry:De Dourados a Paris

"Haveria um escândalo se as ararinhas-azuis
estivessem morrendo uma após a outra nos
manduvis do Pantanal. Mas são só índios
que estão morrendo"


Haveria um escândalo se as ararinhas-azuis estivessem morrendo uma após a outra nos manduvis do Pantanal. Haveria um escândalo talvez ainda maior se uma epidemia estivesse matando um mico-leão-dourado por dia. Mas não há escândalo nenhum com a morte – em ritmo quase diário – dos indiozinhos que vivem nas aldeias de Mato Grosso do Sul. Os indiozinhos, todos sabem, estão morrendo de fome ou de doenças provocadas pela desnutrição, mas isso não parece despertar interesse, muito menos indignação. É até natural. O governo, por exemplo, já mandou dizer que a morte dos indiozinhos está no mesmo padrão do ano anterior, sugerindo que não existe razão para espanto ou preocupação. É mentira. No ano anterior morreram quinze. Agora, nem se passaram três meses do ano e já morreram catorze. Mas até a mentira é natural. Ninguém dá muita bola. Afinal, são só índios que estão morrendo – e índios, ao que parece, são seres inferiores, desprezíveis, atrasados. Só são bacanas quando estão mumificados e servem para impressionar francês.

Sim, nos suntuosos salões do Grand Palais, em Paris, acaba de ser inaugurada a exposição Brasil Índio: as Artes dos Ameríndios. É uma espetacular coleção de 350 peças indígenas. São cocares imensos e coloridos, com aquela vivacidade ímpar que a arte indígena consegue transmitir. São as inventivas urnas funerárias, que nos deixaram um testemunho tão eloqüente sobre a visão indígena da morte. São as belíssimas cerâmicas marajoaras, que emprestam graciosidade até à dureza da geometria. A exposição inclui ainda uma esplendorosa cabeça mumificada pelos índios mundurucus. Tudo isso está exposto num ambiente decorado com sobriedade e elegância, num projeto concebido por dois designers brasileiros. A julgar pela reação inicial da imprensa francesa – que tem sido generosa em elogios à exposição –, o evento será um sucesso. E, nas galerias do Grand Palais, sucesso significa algo como uns 6.000 visitantes por dia.

Por aqui, a galeria a visitar fica no pólo indígena de Dourados, em Mato Grosso do Sul. De acordo com a lista oficial do governo, só naquele local morreram doze indiozinhos neste ano. Todos morreram de fome. Eis a lista:

• 2 de janeiro: J.S.C. Ia completar 9 meses de idade.

• 5 de janeiro: L.V.D. Teve parada cardíaca, era desnutrido. Não completou 3 meses de vida.

• 6 de janeiro: J.P.M., 1 ano e 8 meses.

• 11 de janeiro: A.M.F., também não fez 9 meses de vida.

• 4 de fevereiro: E.D.S., 3 meses.

• 8 de fevereiro: I.I.A. Ia fazer 5 anos.

• 19 de fevereiro: K.F., pouco mais de 6 meses.

• 24 de fevereiro: R.G.B., 11 meses. No mesmo dia, também morre J.D.G., 3 meses.

• 2 de março: J.V.D, quase 4 meses.

• 18 de março: R.C., menos de 3 meses.

• 22 de março: Q.E.A. Não fez 2 meses de vida.



Bem, a exposição em Paris deve ser um sucesso.

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