28.03.2005 | No dia em que decidiu botar a mão sobre os hospitais da rede municipal, o ministro Humberto Costa estava sentado há seis meses sobre as sete páginas do relatório da auditoria 1837 realizada no hospital dos Servidores do Estado, instituição federal localizada no Centro do Rio. Por qualquer lado que se olhe, a conclusão desse trabalho é um horror. A mais cruel informa que, de acordo com o número de médicos, de horas de expediente, de turnos de trabalho, de consultórios e de salas de cirurgia, o setor de ambulatório do hospital deveria fornecer 192 mil consultas por mês. Produz pouco mais de 18 mil. As 174 mil que fica devendo representam mais do que os hospitais de campanha da Marinha e da Aeronáutica, juntos, podem oferecer.
Mas não pára nisso o trabalho dos auditores Virgílio Gomes da Silva Pereira e Roselene Maria Marinho Gonçalves, funcionários públicos com especial pendor para a minúcia. Eles desembarcaram no HSE para investigar denúncia de demora no atendimento e na marcação de consultas. Comprovaram-nas e descortinaram um quadro desolador, que se agrava a cada página do relatório. No turno da manhã, as filas de espera têm em média quatrocentas pessoas. “Como não existe triagem, o paciente na maioria das vezes é encaminhado à clínica médica, aumentando a espera”, registraram. Não precisavam ter procurado mais nada, mas foram adiante.
Num hospital com 186 consultórios, no qual o contribuinte enfia anualmente 174 milhões de reais, dos quais 73,5 milhões apenas para custeio, seria legítimo esperar pelo menos equipamentos de qualidade. Não tem nada parecido. Tudo o que a dupla de auditores encontrou foi uma longa enfadonha coleção de sucatas. Confira:
3 endoscópios (para exame do tubo digestivo, 1 funcionando)
2 eletrocardiógrafos (exame do coração, 1 funcionando)
2 audiômetros (exame de audição, 1 funcionando)
2 cadeiras para otorrino (1 funcionando)
1 autoclave na otorrino (estufa para desinfecção, funcionando parcialmente)
13 lâmpadas de fenda (exame de olho, 3 funcionando)
5 aparelhos de campimetria manual (exame de campo visual, 1 funcionando)
11 oftalmoscópios (exame de olho, todos parados)
2 tonômetros (mede pressão ocular, 1 funcionando)
1 pistola de biópsia na urologia (parada)
1 equipamentos para eletroencefalograma (funcionando parcialmente)
Parece muito? Pois é apenas o início. Apesar do gigantismo do orçamento, o Servidores do Estado não tem sequer computador para informatizar uma central de consulta com telefone. Só isso, que qualquer mercearia de subúrbio já instalou, pouparia metade do sofrimento, do bolso e das solas de sapato dos usuários do SUS.
Não fosse uma dramática radiografia do descaso do poder público em relação à saúde de pessoas obrigadas a procurar socorro oficial, o relatório da auditoria poderia ser peça de bem-humorada ficção. Trecho da página 5, onde se menciona trabalho do médico Paulo Roberto Abreu da Silva, do HSE, é um belo exemplo disso. Na avaliação que produziu sobre a capacidade de trabalho do corpo médico do hospital, da Silva teve o cuidado de incluir a “expectativa de 60 dias de greve anual”. Não é o máximo? Sacramentou-se como praxe da medicina oferecida pelo hospital dos Servidores que, além das férias regulamentares, os médicos deixarão de atender aos pacientes por dois meses para dedicarem-se ao sagrado exercício da greve.
Diante disso, não surpreende que tenha parecido ao governo federal mais razoável invadir o quintal do vizinho que há dois anos cobrava contas atrasadas do que meter a mão nessa ratoeira. É muito mais fácil do que explicar por que, tendo os dois auditores pilhado esse quadro na administração da cardiologista Ana Lipke, que continua diretora do HSE, ela foi nomeada também interventora do hospital municipal Cardoso Fontes.
A esta altura da intervenção, porém, o caminho dos fogos de artifício já está tomado. O que resta do caprichado trabalho de Joselene e Virgílio é a sensação de que ele vai virar fumaça para não estragar o espetáculo. A sorte do carioca é que, depois do show aéreo dos remédios, das ambulâncias sem recheio e das fotos e vídeos do hospital da Marinha no meio do verde da praça, a intervenção na crise da saúde do Rio de Janeiro já mostra cenas como as dos filmes de naufrágio. Os destroços começam a vir à tona.
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