O choque de gestão anunciado ontem, que a partir da Previdência está previsto se espalhar por todo o governo sob o comando do chefe da Casa Civil, José Dirceu, é o primeiro movimento político organizado pelo Palácio do Planalto depois da fracassada reforma ministerial. No primeiro momento vão ser criadas normas para melhorar coisas como os processos de compras e o sistema de prestação de contas, com o objetivo de gastar menos e com mais eficiência. A longo prazo, a idéia é ter dados para entrar em uma discussão mais delicada politicamente: a da vinculação das verbas públicas.
A idéia de acabar com as vinculações, que foram reintroduzidas na Constituição em 1988, tem o objetivo de dar maior agilidade à política econômica. Mas a medida gera reações de setores sociais, que têm verbas garantidas constitucionalmente para a saúde e educação, por exemplo. O governo busca com a melhoria dos gastos públicos encontrar espaço em um Orçamento da União apertado para realizar obras, especialmente de infra-estrutura, e sobretudo ter condições para reduzir a carga tributária através da diminuição das despesas.
Quando tentou usar a verba vinculada da saúde para obras de infra-estrutura de esgoto e saneamento, o governo sofreu duras críticas. Mas, a partir do maior controle dos gastos, será possível melhorar o debate em torno deles, e talvez até mesmo provar que, como suspeitam os economistas do governo, o dinheiro gasto apenas para cumprir uma decisão constitucional, poderia ser aplicado em outros setores mais necessitados.
O mote da redução da carga tributária, acoplado ao choque de gestão, cumpre o objetivo de tentar aproximar novamente o governo dos setores da classe média que hoje se mobilizam contra a Medida Provisória 232, que aumenta os impostos dos profissionais liberais. É claro que, sendo um objetivo de médio a longo prazo, a redução da carga tributária continuará sendo uma forte bandeira oposicionista. Mas estará pelo menos melhor posicionado na discussão.
O governo vem trabalhando com a premissa de que a carga tributária tem que ser do tamanho da despesa e, a cada aumento dela, fica exposto que o gasto público aumentou também. A oposição conseguiu transmitir a idéia de que o governo não está mais controlando os gastos, o que o obriga a aumentar os tributos para manter a meta de superávit fiscal. Com a campanha de choque de gestão, o governo pretende superar essa fama de mau gestor, que deve ser o mote da campanha presidencial de 2006. A oposição se prepara para mostrar-se mais competente administrativamente, pois a política econômica não estará em discussão,
Inviabilizada pela crise política com o presidente da Câmara, a reforma ministerial tinha exatamente essa intenção, a de transmitir à opinião pública uma máquina administrativa renovada e competente, mas acabou revelando, com uma crueza brutal, sua face mais rasteira, a do fisiologismo puro e simples, sem pudores.
O Palácio do Planalto estava todo enredado nessa teia de interesses com o “baixo clero” do Congresso, e agora tenta diferenciar-se dele através de uma administração competente e eficiente. O problema é que, como nada mudou de fato — apenas a troca de seis por meia dúzia no Ministério da Previdência — vai ser difícil vender a imagem de competência com essa estrutura ministerial gigantesca, montada para abrigar os derrotados das diversas facções petistas.
É previsível, ainda por cima, que a relação do governo com a Câmara seja no mínimo conturbada, e a maneira como estão sendo montadas as relações no Legislativo indicam que o governo ficará cada vez mais refém do Senado, onde não tem maioria, cada um dos caciques políticos tem sua zona de influência própria e cada voto tem que ser tratado individualmente.
Assim como o despreparo de Severino Cavalcanti para exercer o cargo de presidente da Câmara foi o sacolejada que tirou o governo da letargia em que se encontrava, entregue de pés e mãos amarrados à sanha dos aliados mais fisiológicos, também pode provocar uma crise política de graves proporções se prevalecer no entorno do presidente Lula a idéia de que ele pode governar sozinho, emparedando o Congresso com sua capacidade de comunicação direta com o povo.
Essa idéia estava embutida na criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, que seria o grande fórum de debates das reformas, que seriam encaminhadas ao Congresso como um “prato feito”, com o respaldo da sociedade civil. O truque não funcionou, e o Conselho acabou virando apenas um local de debates, sem poder decisório nem força política para fazer valer suas idéias. A negociação política teve mesmo que se concentrar no Congresso, onde foi se deteriorando a partir dos métodos incentivados pelo próprio Palácio do Planalto.
Os partidos políticos foram desmoralizados pela estratégia de inflar a base aliada com o estímulo a um troca-troca de legendas despudorado como nunca havia sido visto no Congresso. Com a freada de arrumação que deu, o presidente Lula acabou deixando o PT dono de 70% dos cargos de primeiro escalão do governo, o que fará aumentar o sentimento de desprestígio dos partidos aliados.
O fato é que até hoje o PT não encontrou um bom termo para viabilizar coalizões políticas, e sua convivência com os demais partidos continua sendo muito difícil. Perdeu uma suposta pureza que o diferenciava, e não ganhou a necessária experiência para sair intocado desse promíscuo relacionamento com o “baixo clero”, ao qual se entregou sem cuidados.
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