Hoje, quando o Congresso estará votando (ou não) a Medida Provisória 232, que ficou marcada por aumentar a carga tributária dos profissionais liberais, está sendo convocada pela internet uma grande manifestação, de alcance nacional, contra os deputados, por terem aumentado a verba dos seus gabinetes, depois de não terem conseguido elevar os seus próprios subsídios A idéia é fazer com que todos os que queiram protestar contra os políticos usem preto, ou coloquem panos pretos na janela, como foi feito contra o ex-presidente Collor pouco antes de seu impeachment.
Embora a mensagem tenha sido largamente distribuída, e o ânimo da opinião pública não seja favorável aos políticos de maneira geral depois da eleição do deputado Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara, não é certo que a manifestação tenha êxito, pois ainda é muito restrito o acesso à internet no país.
Embora 80% dos entrevistados na última pesquisa CNI/Ibope tenham se mostrado contra o aumento do subsídio dos deputados, o presidente do Ibope, Carlos Augusto Montenegro, acha que esse é um assunto que mobiliza mais formadores de opinião e as classes altas do que a média da opinião pública, que está mais preocupada com a situação econômica e com a segurança nas grandes cidades.
Ele vê indícios, no entanto, de que o cidadão comum está cada vez mais descrente da política e distanciado dos políticos. Esse é um fenômeno mundial, e há diversas pesquisas mostrando isso: no ano passado, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) fez uma pesquisa na América Latina que mostrava que 54,7% dos entrevistados apoiariam um governo autoritário se isso resolvesse questões como a pobreza e melhorasse a vida da população. Essa crise de legitimidade política, não apenas no Brasil, está fazendo com que surja, dentro do que se conhece como sociedade civil, um fenômeno de mobilização social espontânea, um movimento de opinião pública que ganha maior dimensão pelo uso das novas tecnologias.
O dia de hoje no Brasil junta esses dois fenômenos: o descrédito dos políticos e a mobilização pela internet, no que pode ser o início de um novo processo político. A noção de sociedade civil teve uma inversão completa de sentido: até o século XVII, sociedade civil definia a sociedade politicamente organizada. Depois da Revolução Francesa, passou a definir a sociedade sem o Estado. O cientista político francês Dominique Colas, do Instituto de Estudos Políticos de Paris, reforça a interpretação política da sociedade civil atual dizendo que ela designa “a vida social organizada segundo sua própria lógica”.
Esse moderno conceito, que destaca a capacidade de os indivíduos assumirem seus próprios destinos, define o que o sociólogo Manuel Castells, da Universidade Southern California, dos Estados Unidos, classifica de a “sociedade civil global” que estaria se formando, uma sociedade que, devido aos novos meios tecnológicos disponíveis, poderia existir “independentemente das instituições políticas e do sistema de comunicação de massas”.
Na busca de preencher “o vazio de representação”, essa nova sociedade tenta se impor através de mobilizações espontâneas como a programada para hoje no país, que pode até não ser bem-sucedida, mas representa um primeiro passo para ações políticas autônomas, que já encheram os correios eletrônicos dos deputados e senadores com mensagens de protestos.
Castells vê muitos “significados políticos” no potencial da internet quando se transforma em um meio autônomo de organização, independente de um comando central de controle: criaria “um espaço público como instrumento de organização e meio de debate, diálogo e decisões coletivas”.
Para Castells, a sociedade civil é o espaço intermediário entre o Estado e os cidadãos, e seria um canal para a transformação do Estado a partir da pressão organizada da sociedade, “sem limitar o processo democrático representativo a eleições e à política formal”.
A existência de novas tecnologias — e a tentação de usar a pressão da opinião pública contra o Congresso — é o que faz com que governantes com tendências autoritárias vejam na “democracia direta” uma solução para as limitações que o regime democrático e a “política formal” impõem aos poderes, tanto Legislativo quanto Executivo.
A exacerbação do plebiscito, como ocorre na Venezuela de Chávez, é uma conseqüência dessa tentação autoritária. Um Congresso fragilizado diante da opinião pública, como o nosso no momento, e um presidente popular e carismático como Lula, podem gerar uma crise política de graves conseqüências.
Não falta quem, junto ao governo, defenda uma atuação mais “independente” de Lula diante dos partidos teoricamente aliados, ainda mais depois que repercutiu bem na opinião pública a atitude de congelar a reforma ministerial para não ceder às pressões de Severino.
Por seu lado, a Câmara tem hoje, caso vá mesmo à votação a medida provisória que aumenta os impostos, uma ótima oportunidade para ficar bem com a opinião pública. Neste caso, o governo sofrerá mais uma derrota encaminhada pelo novo presidente da Câmara, que aproveita um momento em que o governo está desorganizado em sua base política para colocar em votação uma medida claramente impopular.
Veríamos assim dois poderes da República um jogando contra o outro, atrás da aprovação da opinião pública. Típica situação de crise institucional. A decisão do presidente Lula de conversar com os partidos políticos e montar, ele mesmo, sua base partidária, é o melhor caminho para organizar a bagunça em que se transformou nossa política.
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