sábado, fevereiro 26, 2005

VEJA on-line Roberto Pompeu de Toledo Olhares estrangeiros



História de dois Brasis: o de um
sábio francês e
o de um repórter
de
suplemento de turismo

Dois dos principais jornais do mundo publicaram, em sua edição da segunda-feira 21, textos que dizem respeito ao Brasil. O primeiro é o Le Monde, jornal de referência da França, que publicou entrevista com Claude Lévi-Strauss, o último sobrevivente dos grandes intelectuais franceses do século XX e que descobriu no Brasil, para onde veio contratado pela recém-criada Universidade de São Paulo, a vocação que o tornaria o mestre supremo da etnografia. "O Brasil representa a experiência mais importante da minha vida", disse Lévi-Strauss. "Sinto por esse país uma dívida profunda."

O então jovem professor francês viveu no Brasil entre 1935 e 1939. Essa experiência está relatada num livro capital, Tristes Trópicos. Só voltou ao país em 1985, por uns poucos dias, integrado à comitiva do então presidente francês François Mitterrand – e então lhe ocorreram coisas curiosas, relatadas na entrevista ao Le Monde. A São Paulo em que Lévi-Strauss morou tinha 1 milhão de habitantes. Agora tinha 10 milhões, e virara uma cidade "assaz assustadora". Ele resolveu visitar a rua em que morara. Não que esperasse rever sua antiga casa – sem dúvida ela não mais existia –, mas pelo menos percorreria a vizinhança. Não conseguiu. Ficou preso num congestionamento de trânsito, e teve de desistir.

Restava tentar outra empreitada nostálgica. A partir de Brasília, Lévi-Strauss embarcou num pequeno avião para as solidões de Mato Grosso. O destino era a terra dos bororos, os índios que tanta importância tiveram em suas pesquisas. Do alto, quando se aproximaram, ele conseguiu divisar aldeias que, como em seus tempos, mantinham a forma circular, mas o avião não pôde descer. A pista era curta demais. Tomou-se então o rumo de volta, e no caminho adveio uma formidável tempestade. Eis então o grande pensador duplamente bloqueado. Na frustrada visita aos bororos, diz ele ao Le Monde ter exposto a vida mais do que no tempo de suas expedições científicas. A segunda vinda de Lévi-Strauss pode ser lida como uma metáfora. Até parece que o país tanto se tinha mexido que deu um nó em torno de si mesmo. Tornou-se intratável e impenetrável.

O segundo texto foi publicado no New York Times, ou melhor, no suplemento de turismo do New York Times. O mundo dos suplementos de turismo é um mundo à parte, como se sabe. Em suas páginas as coisas vão muito bem. Em outras seções de jornais estrangeiros, o Rio de Janeiro tem mais chance de aparecer quando o assunto é bala perdida ou crime organizado. Nos suplementos de turismo, a cidade retoma sua graça e seu esplendor. No caso, a reportagem de Seth Kugel, aliás um repórter que se revela inteligente e bem-humorado, tem enfoque na juventude dourada da cidade e no eterno clima de festa que a envolve. Claro, o texto de Kugel não tem, nem quer ter, a ciência e a sabedoria de um Lévi-Strauss. Mas contém lá a sua antropologiazinha.

O repórter do Times dirige um olhar arguto para a tribo que freqüenta as areias da Barra da Tijuca. Os americanos, diz ele, costumam conceber as praias como lugar de deitar-se ao sol, mas, no Rio, aquilo que ele chama de "social butterflies", ou "borboletas sociais", supera os que aproveitam o tempo de ócio para ler um livro na proporção de dez para um. Há trechos de praia onde vigora um perfeito clima de festa. "Tantas pessoas parecem conhecer umas às outras que lembrar de virar o corpo na areia, para bronzeá-lo por igual, é uma tarefa dispensável, tão freqüentemente é preciso levantar para saudar a chegada de mais um amigo, enrolado em mais um traje de banho impossivelmente miúdo."

A festa na praia, quando a noite chegar, vai prosseguir, segundo descobriu Seth Kugel, nos bares do Baixo Gávea. O "murmúrio sedutor" do português falado no Brasil é nesses lugares pontuado "pelos gritos de amigos cumprimentando uns aos outros, enquanto avançam pelo amontoado de gente para trocar duplos beijos nas faces". O repórter vê aí a encarnação do "típico, puro Rio: barrigas bronzeadas e sorrisos transbordantes, celebração informal e trocas amigáveis". Há problemas, claro – onde não há? –, e um deles, uma carioca conta ao repórter, é o estrangeiro confundir nosso estilo "liberal" e nossa fartura de "calor humano" com ofertas afetivas, quando não libidinosas. Mas o fato, nota o repórter, é que os brasileiros, "gregários por natureza", gostam de orientar os estrangeiros, especialmente (que maldade, Seth Kugel!) "quando têm em mente que um dia visitarão o Hemisfério Norte e recolherão a retribuição pelos favores prestados".

Que diferença entre um depoimento e outro... Claro, cada um segue sua própria pauta. Seth Kugel não se programou para uma impossível visita aos bororos, da mesma forma que Lévi-Strauss, ao que se saiba, jamais se sentiu tentado a uma noitada no Baixo Gávea. Cada um experimentou a sua espécie de Brasil. O do sábio francês revelou-se áspero e temível. O do repórter americano é um jardim das delícias, sem político malandro nem freira assassinada, onde não se toma conhecimento nem do tiroteio nas favelas, ali ao lado.

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