"Se até encobriu um crime para não 'achincalhar' o antecessor, só o fígado
explica que tenha agora confessado
em público uma postura ilegal apenas
para 'achincalhar' o antecessor..."
É quase certo que não terá conseqüência prática o disparate cometido pelo presidente Lula num discurso no Espírito Santo, mas trata-se de um episódio com alguns preciosos ensinamentos. Diante de uma platéia formada por 400 áulicos, Lula contou que, ao assumir o governo, um "alto companheiro" mostrou-lhe as vísceras de uma "instituição" que fora levada à "quebradeira" devido ao "processo de corrupção" ocorrido em "algumas privatizações" feitas na gestão de Fernando Henrique. Acrescentou que, para não "achincalhar" a gestão do antecessor, orientou o "alto companheiro" a "fechar a boca". Ao dizer que tomou conhecimento de um crime e decidiu ocultá-lo, Lula está sujeito a ser processado por prevaricação ou por crime de responsabilidade. Nada disso deve acontecer, dada a ilimitada generosidade com que as falas do presidente têm sido encaradas pela opinião pública. Mas isso não encerra a questão:
• A solidão – O caso mostra que o presidente está muito solitário. Sua trajetória espetacular de retirante nordestino a presidente da República deu-lhe uma extraordinária – e merecida – autoconfiança, mas no comando do país ninguém pode ficar só. Não apareceu um único assessor, amigo, aliado, conselheiro para avisá-lo de que estava dizendo uma tremenda tolice em público? Ao fim da confissão, a platéia aplaudiu...
• O fígado – Lula é vítima de uma ânsia incontrolável para rebater qualquer crítica lançada pelo ex-presidente Fernando Henrique. Com isso, comete o erro imperdoável em gente experiente como ele de fazer política com o fígado. Se até encobriu um crime para não "achincalhar" o governo do antecessor, só o fígado explica que tenha agora chegado ao ponto de confessar publicamente uma postura ilegal apenas para achincalhar o governo do antecessor...
• A ética – O presidente autoriza o país a imaginar que sua celebrada retidão ética navega nas ondas do interesse da hora. Se chegou a esconder as irregularidades cometidas na gestão de um adversário político, é lícito imaginar que faria a mesma coisa, quem sabe até com mais empenho, para proteger um amigo ou aliado. Ao narrar o episódio, Lula parece querer nos dizer que ser generoso e magnânimo é isso...
• A lei – Lula desconhece um dos rudimentos de sua missão como presidente da República. Ele não pode esconder crimes, sob pena de cometer um crime ele mesmo. Se quiser esconder, então que não diga que o fez. Mas, ao esconder e contar para todo mundo, Lula nos indica dois caminhos. O primeiro: acha que está acima da lei, mas isso não parece provável, pois a lei, diz ele, vale para "o presidente ou o pistoleiro". O segundo: ele não conhece a lei...
• A credibilidade – O inusitado do episódio é patente. Para alguns, ficou a impressão de que o presidente pode ter contado algo desprovido de fundamento real. Como se fosse uma anedota, uma parábola, uma alegoria. Esta alternativa para o episódio pode parecer a mais inocente, mas é indicadora de uma rachadura na aura da credibilidade presidencial.
Por tudo isso, talvez Lula devesse ter feito ele mesmo o que recomendou ao "alto companheiro" que lhe denunciou o "processo de corrupção": fechar a boca. Mas, pelo visto, Lula está muito só. Autoconfiante e só.
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